Antes de falar sobre criatividade, precisamos quebrar alguns paradigmas: crenças limitadoras que distorcem nossa percepção acerca de nós mesmos e de nossas capacidades. Vamos a eles:
-criatividade é uma habilidade inata a algumas pessoas;
-ideias originais têm necessariamente de ser criativas;
-a criatividade é, em geral, um “momento Eureka!”;
Preparado(a)?
Então:
Todos nós somos criativos(as). O problema é que, na correria cotidiana – e naquilo que o filósofo sul-coreano Byung-chul Han define como “estado de hiperatenção”, acabamos não nos dando conta das diversas ideias que surgem em nossa mente ao longo do dia. E isto ocorre justamente porque, não tendo tempo (ou a prioridade adequada) para colocar essas ideias em prática no momento em que elas ocorrem, acabamos por confiá-las à memória e, em razão da grande quantidade de tarefas com que temos de lidar, perdendo-as – por vezes, para sempre.
Pense em uma situação em que você tinha uma tarefa importante para concluir. Porém, por não a ter escrito em um papel ou digitalizado em alguma ferramenta do celular, por exemplo, passou horas e horas tentando “se lembrar de não esquecer” o que tinha para fazer. No caso das ideias criativas, entretanto, há um facilitador do esquecimento: são propostas pelas quais não seremos cobrados e que, por si só, não têm um prazo definido para serem realizadas.
A dica aqui, portanto, é manter papel e caneta sempre por perto (preferencialmente, embora apps de notas, como Evernotee Google Keep, também ajudem) e anotar essas ideias o mais rápido possível. Pode ser que você nunca as utilize e que, no fim das contas, sejam apenas elucubração. Mesmo assim, vale manter o registro, porque ele pode se desdobrarem alguma solução importante, proposta de negócios ou naquilo que se costuma chamar de “disrupção”. Vai que…
Observe também que ideias criativas não precisam ser totalmente originais. Podemos muito bem nos apoiarem conceitos, processos, ferramentas e tecnologias existentes e, a partir delas, idealizar uma nova abordagem capaz de resolver questões específicas de nosso cotidiano. Talvez elas não tenham o mesmo “glamour” de um foguete espacial capaz de pousar na superfície de algum planeta distante, mas cumprem seu papel de promover transformações e melhorias incrementais que facilitam nossa vida. Atente-se a elas, pois são o tipo de ideia que mais nos ocorre e que mais nos beneficia em termos absolutos.
Há muitas histórias – inclusive com personagens famosos – que descobriram tecnologias, respostas para questões matemáticas antigas ou as bases de suas principais teorias em um momento repentino, de inspiração filosófica – o tal do momento Eureka.
Embora personalidades como Albert Einstein e Charles Darwin tenham relatado que sentiram o momento em que uma linha de pensamentos começou a fazer sentido e logo transcreveram essas ideias naquilo que viria a ser a Teoria da Relatividade e a Teoria da Origem das Espécies, respectivamente, essa clareza não foi tão súbita assim: biógrafos e pesquisadores que se debruçaram sobre a trajetória dessas duas grandes mentes observaram um processo longo, lento, porém consistente, de captura de elementos, insights, observações, anotações, prática e experimentação que, com o passar do tempo, foram se cristalizando no entendimento e tomando forma.
Outro ponto é que existe uma crença de que quantidade e qualidade são excludentes: uma grande ideia só poderia ser desenvolvida por alguém que trabalha pouco, dedicando-se exclusivamente a esse único projeto que, mais cedo ou mais tarde, assumiria as formas de obra de arte que lhe fossem devidas. Entretanto, essa premissa é falsa. De acordo com Robert Sutton, Professor de Stanford:
“Os pensadores originais “apresentarão muitas ideias que parecerão anomalias estranhas, becos sem saída e fiascos completos. Mas o custo vale a pena porque eles também criarão um conjunto maior de ideias – principalmente novas ideias.”
Em outras palavras, o caminho mais seguro para a originalidade passa justamente pela quantidade: a produção sistemática azeita os mecanismos cerebrais e motores, que com isso ganham experiência, além de explorar campos novos – e esse processo é fundamental para que a mente divague em possibilidades, transformando iniciativas por vezes insossas em pequenas contribuições para algo de grande qualidade, tempo depois.
Adam Grant aponta que:
“Muitas pessoas deixam de atingir a originalidade porque concebem algumas poucas ideias e depois ficam obcecadas em aperfeiçoá-las.”
Sendo assim, dê livre vazão a suas inspirações intelectuais e artísticas, produzindo, treinando, e (por que não?) atrevendo-se por trilhas ainda não percorridas.
Olhos atentos, mente aberta
A arte da criatividade, se podemos pintá-la desta forma, compreende também uma visão externa, curiosa, sobre o mundo em que vivemos. Já falei sobre a importância do mindset de crescimento, e como ele se casa perfeitamente com uma competência chamada lifelongl earning – o aprendizado contínuo ao longo de toda a vida. Mas, mais do que isso, é preciso assumir uma postura que Austin Kleon denomina “colecionador de ideias”.
Não precisamos partir do zero para sermos originais. Podemos – aliás, devemos – coletar boas ideias e utilizá-las como base de um processo criativo que tem por intuito aprimorar algo.
“Estamos falando de prática, não de plágio – plágio é tentar fazer o trabalho de outro passar por seu. Copiar é engenharia reversa. É como um mecânico removendo partes de um carro para ver como ele funciona.” (Kleon, 2013)
Dessa forma, as referências coletadas podem ser metamorfoseadas em soluções distintas, melhores.
Na final da adolescência, devorei “Algo sinistro vem por aí”, uma obra de horror, escrita por Ray Bradbury – sim, sempre dou um jeito de falar dele. A história traz um parque de diversões itinerante que chega a uma cidade americana e atrai espectadores para suas atrações macabras, transformando-os, e suas vidas, completamente. Mas esse livro tem uma particularidade: o enredo dos personagens possui diversas lacunas e possibilidades de continuação com que o autor nos presenteou. Aceitei o desafio e produzi alguns rascunhos com desfechos e aventuras distintas para a dupla de jovens exploradores, Jim Nightshade e William Halloway, e as diversas pessoas bizarras com quem eles interagem (e quase se perdem). Esse exercício, sempre tensões senão aquelas de um adolescente com tempo livre e ideias na cabeça, foram meu primeiro contato com a produção literária, e uma maneira divertida de passar eu também a produzir minhas histórias. Essa experimentação, que se estende até hoje, é um aprendizado e um refinamento que jamais poderiam ter ocorrido por meio de uma única produção.
Em “Roube como um artista”, Austin Kleon conta como o tédio – entenda-o aqui como uma alternativa ao modo executor, quando apenas desempenhamos tarefas, sem tempo reflexivo – tem um papel relevante em sua produção criativa: sem essas pausas, suas ideias não teriam espaço nem motivação para se organizar e reorganizar, dando espaço ao novo.
Na edição 224 da Vida Simples, Luciana Pianaro, CEO e Publisher da revista, compartilha uma perspectiva parecida no artigo “A louça e a meditação”. Recordando-se da infância, trouxe à tona atividades que a divertiam, como escolher feijão, e outras menos agradáveis, como lavar a louça. As pazes com esta última só foram feitas muitos anos depois, quando, em conversa com uma amiga, esta lhe trouxe uma visão bastante diferente da tarefa:
“(…) ela me contou como o momento de lavar a louça era especial, pois esvaziava a mente dos problemas, entrava em fluxo calmo e tranquilo. Meditava. Eu focava na chatice de lavar a louça. Ela focava no vazio, na serenidade. Aquela nova perspectiva mudou meu olhar sobre a ‘função’ para sempre.”
Não há uma fórmula específica que “desperte” a criatividade que há em cada um de nós. Precisamos, por isso, facilitar sua presença, tornando simples o ato de registrar ideias, mantendo o olhar sempre atento, experimentando e, principalmente, nos permitindo momentos de encontro com nossa imaginação.
Daqui pra frente é com você 😉.
Saiba mais em:
BRADBURY, Ray. (2019). Algo sinistro vem por aí. Rio de Janeiro: Difel.
GRANT, Adam. (2017). Originais – como os inconformistas mudam o mundo. São Paulo: Sextante.
KLEON, Austin. (2013). Roube como um artista: 10 dicas sobre criatividade. São Paulo: Rocco.
PIANARO, Luciana. (2020). A louça e a meditação. In: Vida Simples, edição 224.