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Vamos investir na saúde mental

Esse é o tema da campanha de 2020 do Dia Mundial da Saúde Mental, celebrado no último 10 de outubro. A ação é promovida desde 1992 por uma instituição internacional chamada World Federation for Mental Health (WFMH), criada em 1948 com o fim de impulsionar a conscientização da necessidade de cuidados e prevenção dos transtornos mentais e emocionais, além da promoção da saúde mental em todas as nações.

Entretanto, foi somente agora, quase 30 anos depois, que o dia ganhou a mídia internacional e muitos textos como este. O apelo da campanha de 2020 é investir, tanto como indivíduos quanto como sociedade. E um dos incentivos é justamente espalhar pelas redes sociais imagens e palavras sobre experiências pessoais e de comunidades com o cuidado mental.

Viralizar – essa é a ordem do dia. Verbo que apenas gente do nosso tempo entende. Tudo voa nos dias de hoje. E a ideia da WFMH é que voem aos quatro cantos do planeta a urgência de perceber que mente é corpo, mente é sociedade, mente é vital também.

A campanha também é um apelo para que os governos tenham propostas de investimento substancial, levando os cuidados de saúde mental de qualidade para muitos.

A situação de confinamento, de distanciamento social, além do grande volume de tristeza e luto consequentes do Covid-19, excedeu a preocupação com o adoecimento físico; agora importa igualmente o adoecimento mental. Jornais no mundo todo vêm desde maio publicando uma série de reportagens sobre como todas essas mudanças afetaram o modo de pensar e sentir de muitas pessoas – em especial dos adolescentes.

Assim como na saúde física, a prevenção é crucial na saúde mental, pois o assustador em tudo que toca a mente, a alma, os pensamentos, as emoções (o leitor pode escolher a palavra que melhor lhe transmite o que é costumeiramente chamado de mental) é que, quando o barulho é escutado, a doença já se instalou. A instalação do patológico é sempre e invariavelmente silenciosa.

O que chamamos de Transtornos Mentais são, na verdade, já as tentativas de recuperação de um estado mais adaptado ao engajamento com a vida e suas demandas, que foi perdido ou afetado. Os transtornos mentais são a luta pela restauração da sanidade. Quando os transtornos aparecem, a doença já fez seu estrago. A doença é o sutil e silencioso desligamento de si mesmo, das pessoas à sua volta, das instituições, da natureza, enfim: um afastamento das convenções da vida civilizada. É por isso que o psiquiatra receita a medicação, mas não deixa jamais de incentivar e encaminhar a pessoa para a psicoterapia, que irá, por sua vez, contribuir com os esforços que a própria mente da pessoa já vem fazendo.

Na grande maioria das vezes, após um tratamento de longo termo, a condição “saudável” se restabelece. Em outros casos, como as diversas psicoses, negações e neuroses graves será uma sequela a observar por toda a vida. Portanto, prevenir é imperativo.

Bem, mas o que é exatamente saúde mental?

Para responder a essa pergunta precisamos pensar na infância, e em como as crianças nos parecem felizes e satisfeitas enquanto brincam. Sabemos bem, elas brincam todo o tempo.

Os pais colocam os divertidos mobiles planando sobre berço do recém-nascido porque sabem que logo que abriremos olhinhos, imediatamente, irão começar a brincar. Quando uma criança está amuada e não brinca é porque está doente.

Pois nosso caminho até a compreensão da saúde mental começa justamente com a experiência do não brincar: quando um adulto deixa de viver num estado semelhante ao da brincadeira para a criança, ele está mentalmente adoecido. A graduação da patologia e suas especificidades irão variar, mas a raiz está na impossibilidade de construir, suportar e manejar brincadeiras. Na insuficiência de poder viver, como diz o poeta, “nesse mundo divinamente absurdo do cérebro”.

Brincadeira não se trata apenas de fazer graças ou piadas. No entanto, para a criança assim como para o profissional de saúde mental, brincar é coisa séria e dolorida. A brincadeira é dura como a vida. Há esforço, persistência e paciência. Há muita angústia, choros, medo, alegria, celebração – tudo isso e muito mais. A função do brincar é biológica, psicológica e social.

Não se trata tão somente de rir: estamos em terrenos muito além da bufonaria ou do deboche; estamos em terrenos do trágico. Estamos em dimensões de profunda satisfação com a brincadeira em si, isto é, com a experiência de viver.

 

Experimentar a vida em toda sua dimensão e extensão é tudo o que uma pessoa precisa para uma existência feliz e satisfatória, sem adoecimento mental. As experiências de viver garantem nossa continuidade; inserimo-nos como um elo na corrente da humanidade, engajados com aqueles à nossa volta, com aqueles que já não existem mais – através da história, das obras criativas que deixaram; e ainda também engajados com as pessoas que virão a existir um dia, através da preocupação e cuidado com o nosso legado.

Sim, há sim um pouco de loucura em viver criativamente. Por exemplo, por vezes nos pegamos em pleno diálogo compartes de nós mesmos – logo voltarei à importância do diálogo.

Para a criança usamos a palavra brincadeira; para o adulto, o lúdico. É disso que estamos falando. É na ludicidade que a natureza humana se mostra assustadora, fascinante e poética. É somente ali, nessa exclusiva posição, onde é possível construir e compartilhar. Essa constatação é ecumênica, ponto de consenso entre todas as escolas que se debruçam sobre o tema e se propõem a cuidar da saúde mental.

O historiador holandês Johan Huizinga, em Homo Ludens faz um levantamento das diversas derivações do jogo na civilização. Destaca, por exemplo, que Platão costumava dizer que a própria humanidade era um jogo de deus. Esse grego tão influente também acreditava que a religião é essencialmente constituída por jogos lúdicos, dedicados à divindade, os quais são para os homens a mais elevada atividade possível. Aprender é outra atividade lúdica. As raízes do direito e do sistema jurídico estão nos jogos; também a guerra é um jogo, ainda que perigoso; a filosofia, a arte e, claro, a poesia. Em outras palavras, atividades da mais alta abstração como o mistério, o sacro, o rito, produzem na alma humana os efeitos do brincar. A experiência de todos os jogos escapa à lógica. Vai além, até a experiência humana.

Donald Winnicott, pediatra e psicanalista inglês, também se ocupou das experiências de estar saudável. Descreve a condição do que estamos falando de um modo encantador:

“Observe-se que estou examinando a fruição altamente apurada do viver, da beleza, ou da capacidade inventiva abstrata humana, quando me refiro ao indivíduo adulto, e, ao mesmo tempo, o gesto criador do bebê que estende a mão para a boca da mãe, tateia-lhe os dentes e, simultaneamente, fita-lhe os olhos, vendo-a criativamente. Para mim, o brincar conduz naturalmente à experiência cultural e, na verdade, constitui seu fundamento.”

“Sem o elemento lúdico não podemos sobreviver”, destaca Huizinga. Nossa vida psíquica é imaginativa. Vivemos dentro de um espaço imaginativo e lúdico da experiência. O filósofo americano Stephen K. Levine concluiu: “psicopatologia é resultado de uma injúria à nossa capacidade imaginativa”. Já James Hillman, psicólogo americano, insiste que em nossa imaginação somos livres, e devemos saber bem a diferença, fato que é, por si só, um enorme alívio para os seres humanos.

O que pode parecer irrelevante, no entanto, é uma das coisas mais difíceis para nosso aparelho de pensar: a distinção entre imaginação e realidade. Justamente, porque nosso corpo e nossa fisiologia respondem quase da mesma forma frente a um fato ou a uma cena de filme, um parágrafo de um romance, um trecho de música. Nossas lembranças, igualmente, incorporadas têm a mesma química da realidade.

 

Em diferentes áreas das ciências humanas os homens vêm se dedicando a compreender esse estado de satisfação. Marc Chagall, artista plástico do século XX, muito se interessou pela experiência de felicidade, e se dizia feliz. Aproximou essa experiência às cores de sua arte. Para ele, a cor é química, é amor: assim como as cores são reações químicas encontradas na natureza, o amor é uma reação química presente e factível em nossa fisiologia. Questionava-se a respeito do que é capaz de gerar tal química nas pessoas e afastá-las da exagerada ansiedade. E chegou à conclusão de que o processo de desintegração de valores iniciado há dois mil anos no Ocidente, com a ascensão da ciência, vem estreitando a experiência de viver das pessoas. Essa fragmentação que nos trouxe aos labirintos do Cubismo provoca os mais altos níveis de angústia.

Compreender e aprender a lidar com essa experiência humana, de múltiplas escolhas, não registrada antes do advento da modernidade, é uma das maneiras de prevenção do adoecimento psíquico. Acreditava Chagall que a observação e a exposição aos efeitos das cores cooperam na difícil tarefa de incorporação das experiências de vida, com todas as nuances – das mais desagradáveis às mais belas. Assim, cada um de nós estabelece sua própria paleta ética amorosa. Ele resumiu:

‍“Se há uma crise moral, é uma crise de cor, de matéria, de sangue e suas partes, de palavras e sons, e de todos os outros elementos com os quais se constrói uma obra de arte, assim como uma vida.”

As obras da humanidade são genuinamente um bálsamo. Boécio, um prodígio jurista e filósofo do século VI, vítima de mal-entendido e perseguições, foi condenado à morte e manteve sua sanidade, durante a clausura, usando de um jogo. Enquanto preso, presenteou a humanidade com uma obra excêntrica, uma dessas leituras obrigatórias. Sem dúvida, um tratado de como a imaginação, o jogo, a brincadeira e o diálogo nos previnem de qualquer enlouquecimento prolongado. Em A Consolação da Filosofia, um diálogo com sua própria imaginação, Boécio brinca, desafia, provoca, argumenta e compete com sua razão e com todo o conhecimento que acumulou durante sua vida de humanista, um devoto das obras da humanidade. A Filosofia se personifica, os textos clássicos incorporados tornam-se “fontes vivas, à prova da tristeza, do sofrimento, da morte”. O lúdico é lúcido.

 

*Quadro Commedia dell’Arte, óleo sobre tela. Marc Chagall, 1958.

 

Há uma diversidade volumosa dos tipos de ludicidade – algumas solitárias, como lavar uma louça e escrever um livro, outras em grupo, como um conselho administrativo, um time de basquete ou ainda um grupo de jovens se divertindo. Entretanto, mesmo as mais solitárias não são assim tão solitárias: há sempre, ao menos, uma musa.

Os exemplos nas artes são muitos: John Lenon e Yoko Ono, Elena Ivanovna Diakonova e Salvador Dalí, Alma Mahler(talvez a musa das musas) e Gustav Mahler, Oskar Kokoschka e Walter Gropius, Camile Claudel e Auguste Rodin, Joseph Conrad e Ford Madox, Sigmund Freud e Wilhelm Fliess – enfim, a lista é enorme. Dialogar com nossas musas é imprescindível para criar arte e vida.

Mergulhando rapidamente na etimologia do vocábulo diálogo, aprendemos que é uma palavra que vêm do grego antigo, formada por duas partes, dia que significa “através” e logos que significa “palavra” e/ou “conhecimento”. Portanto, poderíamos dizer que dialogar é um processo de conhecer pela palavra o que é ser humano neste mundo.

Dialogar, demanda intensa emoção, é uma das maneiras mais utilizadas na cura dos distúrbios do pensamento. Por isso, as terapias são também um treino para se aprender a falar de modo autêntico, genuíno; primeiro com seu terapeuta e, então, com todos os que lhe importam. Falar e ser ouvido é a única forma, embora ainda precária, de tatearmos e apalparmos as cores de nossa experiência humana.

Assim sendo, vamos investir!

“Se quiser a cura mostre ao médico a doença”. Anicius Manlius Severinus Boëthius, séc.VI

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Débora de Mello

Débora de Mello

Psicóloga clinica e psicanalista. Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de SP - SBPSP. Psicanalista pelo Instituto Sedes Sapientiae. Especialista em terapias na infância pela Faculdade de Ciências Medicas da Universidade de Campinas UNICAMP. Mestre em Jungian Studies and Creative Life pelo Pacifica Graduate Institute - EUA. Membro associado NPSI-Northwestern Psychoanalytic Society & Institute, EUA.

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