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Reestruturando diálogos, aperfeiçoando relacionamentos

Nós não nos consideramos pessoas violentas, porque a violência é quase sempre associada a manifestações físicas, como brigas e guerras. Porém, nossa real violência é demonstrada de formas mais sutis – e contundentes: as palavras. Ao descuidar da comunicação, alimentamos emoções negativas em pessoas que, ao longo de sua jornada, não foram preparadas nem estimuladas para entender e, principalmente, externar sentimentos. E, assim, erguemos barreiras que nos tornam incompreensíveis e irreconciliáveis – em relação ao outro e a nós mesmos.

 

 

Por que é tão difícil discordar sem brigar? No livro que consolida seu trabalho de pesquisa e prática, “Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais”, Marshall B. Rosenberg observa que:

“Nosso repertório de palavras para rotular os outros costuma ser maior do que o vocabulário que temos para descrever claramente nossos estados emocionais.” (p. 73)

Durante toda nossa trajetória escolar e, muitas vezes se estendendo à fase adulta, a educação sentimental é um tema que nos permanece alheio, espécie de tabu. Duvida? Com que frequência as pessoas perguntam como você está se sentindo? Estagnamos no automático e desinteressado “Tudo bem, e você?”– mas mesmo aqui a pergunta se limita ao estado atual, não a sentimentos. E pior: os estímulos sobre sentimentos costumam vir na direção contrária: “meninos não choram”, “você já está grandinho(a) para isso” e coisas do tipo. Somos criados para esconder e mascarar sentimentos, sendo essa falsa habilidade vista como sinônimo de força de caráter e equilíbrio.

Essa desconexão entre o que acontece em nosso interior e os paradigmas sociais de estabilidade e autocontrole, com o tempo, fragilizam os laços que nos unem a nós mesmos e às pessoas com quem nos relacionamos, seja pessoal ou profissionalmente. Não acostumados a discutir sentimentos, levamos as discussões a planos irreconciliáveis, julgamos e atacamos, pois não sabemos outra forma de expressar nossas reais necessidades. E somente à distância, quando sozinhos e recolhidos, parece termos o direito de externá-los. Lembram-se da música d’Os Paralamas do Sucesso:

“Quando tá escuro e ninguém te ouve,
Quando chega a noite e você pode chorar (…)” (Lanterna dos afogados, 1989)

 

Emoção ou sentimento?

Há certa confusão entre os termos “emoção” e “sentimento”. Na definição de António Damásio, renomado neurocientista português, emoções são reações químicas e biológicas de nosso corpo, desencadeadas de forma involuntária e, portanto, incontroláveis; já os sentimentos são a experiência mental que temos daquilo que se passa no corpo, desencadeados por um processo intelectual, inato ao ser humano. Enquanto as emoções podem ser observadas (ao menos em parte), seja através do microscópio, medições cerebrais, expressões e movimentos, o sentimento é algo inobservável: nenhuma pessoa senão nós mesmos consegue dizer quais sentimentos foram formulados mediante um acontecimento.

As emoções representam reações a estímulos do ambiente. Entretanto, pessoas diferentes podem ter emoções distintas perante um mesmo evento. Isso ocorre porque a sua ativação está condicionada a outros fatores complexos, como experiência de vida e crenças. Por exemplo: durante uma ponte aérea entre os aeroportos de Congonhas (SP) e Santos Dumont (RJ), e ao se aproximar do momento de pouso em um dia de chuva forte e neblina, um passageiro é acometido pelo medo; logo em seguida, é ajudado por uma pessoa da equipe de comissários de bordo que, já acostumada a pousos com mau tempo, tenta acalmá-lo. Por outro lado, eu posso estar sentindo uma tristeza profunda e, no entanto, esboçar uma expressão alegre no rosto, interagindo socialmente de forma a esconder esse sentimento; algumas pessoas poderão supor minha tristeza, mas não terão certeza dela. Emoções são breves e passageiras; sentimentos podem se estender por uma vida.

A grande fornalha

No prefácio do livro, Arun Gandhi compartilha um episódio de sua infância em que seu avô o ensina a construir uma espécie de árvore genealógica da violência: ao fim do dia, os dois discutiam todos os episódios ocorridos e as experiências do garoto sobre eles, e os classificavam nessa árvore sob os galhos de “física” (manifestações de violência em que houvesse emprego de força física) ou “passiva” (quando a violência estivesse associada a questões emocionais). Com o tempo, Arun percebeu que o lado da passiva se expandia rapidamente.

Este exercício, que podemos repetir em nossa rotina, demonstra que, na maior parte do tempo, as ações violentas se ocultam atrás de palavras, não necessariamente de ações, e que nossa inaptidão para lidar com e expressar sentimentos acaba cavando abismos de entendimento e colaboração entre as pessoas. Enquanto não soubermos pacificar esse galho, não conseguiremos ressignificar no outro seus comportamentos para que não haja violência física.

A Comunicação não-violenta (doravante apenas “CNV”) nasceu de um questionamento aparentemente simples, mas profundo: por que algumas pessoas conseguem se manter compassivas em situações de extrema adversidade, ao passo que outras se portam de forma agressiva? Consiste, portanto, em uma técnica para nos auxiliar a formular, de maneira clara, o que de fato desejamos, abrindo espaço para um diálogo em que temos a oportunidade de nos expressar com honestidade e transparência, ao mesmo tempo em que oferecemos ao outro a mesma abertura de forma empática.

A CNV é fruto de um extenso trabalho de pesquisa: Rosenberg viajou o mundo e conheceu diversas culturas, estudando as conexões que as pessoas estabeleciam entre si. Segundo ele, as conversas carregam duas possibilidades: a primeira é um jogo do tipo “quem está certo e quem está errado”; a segunda representa a predisposição de “fazer do mundo um lugar melhor”. Assim, e através da CNV, nós podemos criar interações em que as pessoas buscam naturalmente contribuir com o bem-estar do outro, gerando benefícios recíprocos. É uma forma de relação que:

– não se baseia em pré-julgamentos, críticas ou rótulos;

– não é utilizada como caminho para se esquivar de responsabilidades, culpando o outro; e

– não se fortalece por meio de ameaças e certezas sobre quem deve ser punido ou recompensado

Este modelo nos ensina a estar presente no momento e a nos conectar com valores e necessidades profundas – as verdadeiras razões que movem as palavras e o comportamento das pessoas. Por meio dela, nós aprendemos a falar a verdade e a compartilhar nossa perspectiva de uma forma que conduz à harmonia, não ao conflito – inclusive em situações desconfortáveis e complexas, que envolvem variações emocionais intensas ou assuntos delicados. Dessa forma, podemos nos posicionar de uma maneira menos defensiva e mais compassiva.

 

Colocando em prática

Assim como ocorre nos esportes ou com qualquer outra competência, a habilidade da CNV requer treino, a partir de pequenos hábitos, repetidos e aperfeiçoados ao longo dos dias. Isso significa que com a constância dessa prática, começaremos a associá-la como resposta padrão para as situações do dia a dia.

O primeiro passo é o autoconhecimento. Precisamos conhecer nossas emoções e as interpretações que fazemos delas. Afinal, é justamente nos momentos de oscilação emocional que tendemos a agir e responder mais instintivamente, piorando, em vez de resolver, conflitos e situações difíceis.

 

 

Reserve cinco minutos do seu dia, de preferência logo ao acordar, para refletir sobre cenários desafiadores com os quais você lidou no dia anterior. Relembre os principais pontos dessa ocasião e anote em uma tabela (vamos chamá-la de “Tabela da Empatia”).

Cada pensamento está associado a um evento, uma observação que tem relação com a situação vivenciada. Logo, descreva este evento de maneira autêntica – posteriormente, e a partir de um diálogo baseado nas técnicas da CNV, você pode até descobrir que ele está sendo considerado sob uma perspectiva única e/ou enviesada, mas é importante descrevê-lo da forma como foi ou continua sendo percebido:

Então, indique qual foi o sentimento que ele despertou em você (a lista de sentimentos disponibilizada no Anexo I pode ajudá-lo(a) nesta etapa):

Em seguida, tente entender quais foram seus pensamentos a respeito desse sentimento – e aqui permita-se deixar quaisquer filtros de lado e expressar de forma genuína, eventualmente através de termos fortes, os pensamentos que se formaram em sua mente naquele momento:

A partir da constatação desse evento, tente refletir sobre qual sua real necessidade a respeito dele. O que precisaria acontecer para que o sentimento identificado inicialmente desaparecesse? Nesta etapa, é importante olhar para dentro de si e entender qual é a sua necessidade, sem projetar ações para o outro:

Por fim, e de forma compassiva, formule um pedido capaz de satisfazer essa necessidade. Note que ele deve ser concreto e específico, pois solicitações genéricas tendem a trazer ambiguidade e resultados insatisfatórios:

A criação e utilização desta tabela vai, com o tempo, se tornar mais fácil, na medida em que você adquire maior consciência sobre suas emoções e os sentimentos que lhes seguem. Pratique esses pedidos para que eles despertem uma nova perspectiva na forma como você se comunica atualmente.

 

Componentes da CNV e etapas de transformação

O modelo da CNV parte da integração de alguns componentes principais:

Percepção: conjunto de princípios e perspectivas que apoiam uma existência compassiva, colaborativa, mas ao mesmo tempo plena de coragem e autenticidade em nossa relação conosco mesmo e com o meio em que estamos interagindo;

Linguagem: o entendimento de como as palavras, pronunciadas e ouvidas, podem contribuir para criar tanto conexões quanto para nos distanciar uns dos outros, além de apoiar ou ferir;

Comunicação: saber pedir aquilo de que realmente necessitamos, sem impor ameaças e sem qualquer forma de coerção; ouvir o outros em absorver ou externar críticas e culpa, ainda que não concordemos com seu ponto de vista; aprender a conduzir nossa fala de modo a buscar o benefício recíproco de todas as partes envolvidas; e

Influência: compartilhar o poder em vez de usá-lo sobre o outro, a fim de facilitar um ambiente em que todos possam se sentir igualmente valorizados, respeitados, honrados e seguros.


 

Todo modelo de comunicação possui ao menos duas partes: emissor e receptor. Na CNV, elas são chamadas de “honestidade” e “empatia”, e o processo todo ocorre em quatro etapas:

1. Observar sem julgar: como nossas observações e as dos outros constroem os fundamentos sobre o que estamos conversando. Nesta etapa inicial devemos eliminar quaisquer tipos de julgamentos, críticas ou opiniões que possam surgir um uma determinada interação. O importante é encarar a situação de forma neutra, ouvindo com interesse genuíno o que o outro tem a dizer, a fim de compreender o contexto de seu ponto de vista. O objetivo é fazer com que a relação seja transformada, não encerrada;

2. Expressão dos sentimentos: o corpo e a mente reagem quando nossos valores e necessidades estão ou não sendo atendidos. Por isso, é fundamental entender, reconhecer e expressar os sentimentos, pois eles oferecem um ponto de conexão muito forte que nos ajuda a compreender a experiência do outro e a comunicar nossa própria;

3. Declaração das necessidades: são nossos motivadores, as razões profundas pelas quais estamos nos comunicando. Quando declaradas, elas permitem ao outro um olhar mais humano e a construção de conversas equilibradas e empáticas, que trazem proximidade, reconciliação e que constituem a base para soluções do tipo ganha-ganha;

4. Pedido: é uma solicitação com base no que observamos, sentimos e necessitamos, feita de forma clara e objetiva e de uma maneira em que ela assume a entonação de um pedido, não de uma exigência –afinal, o outro sempre tem a possibilidade de escolha.

 

Retomando a Tabela da Empatia criada anteriormente e, embora esse processo possa ser utilizado inicialmente para que você “organize” seu eu interior, ele pode – e deve – ser expandido para seus diálogos com o outro, transformando-se assim na CNV e permitindo que você estabeleça conexões genuínas, harmoniosas e colaborativas. Para isso, construa uma história que concatene as colunas de sentimento, evento, necessidade e pedido montadas logo acima. Deixe de lado julgamentos, inferências e pensamentos – inclusive os que você listou na tabela –, a fim de potencializar essa conexão. A história deve seguir um enredo parecido com este:

Quando < EVENTO >, eu me senti < SENTIMENTO >, porque preciso de < NECESSIDADE >. Como poderíamos < PEDIDO > ?

Nesse processo, devemos evitar abordagens do tipo:

(…) eu me senti assim < SENTIMENTO > porque você (…)

pois esta fala culpa o seu interlocutor por aspectos que apenas você gerencia. Afinal ninguém pode despertar sentimentos em nós, sem a nossa permissão; e

Por que você não < PEDIDO > ? em vez de Como poderíamos ? <pedido> ?</pedido>

uma vez que o tom da primeira frase é impositivo e tende a acuar o interlocutor, enquanto a segunda convida para que ambos consigam chegar juntos à melhor solução possível.

Lembre-se também:

– de que há um momento certo para que esse diálogo ocorra, tanto para você, quanto para o outro. Desta forma, antes de iniciá-lo, certifique-se de que ambos estão de fato abertos para a troca ou quando seria um bom horário para isso;

– uma vez que estamos fazendo um pedido sincero e genuíno, devemos entender que a outra pessoa pode simplesmente não concordar com ele, nem se predispor a atendê-lo. A partir desta negativa, você pode escolher outras formas de atuar ou se relacionar – afinal, tudo são escolhas

O modelo da CNV pode ser empregado eficazmente para desenvolver, transformar e enriquecer interações familiares, corporativas, entre amigos e casais, bem como em processos ligados à educação e ao desenvolvimento de pessoas. Por meio dele, podemos contribuir para a criação de ambientes empáticos e solidários – para nós mesmos e àqueles que valorizamos.

 

 

Anexo I – Lista de referência: sentimentos

 

Saiba mais em:

 

Rosenberg, Marshall B. (2006). Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. São Paulo: Editora Ágora.

NVC MarshallRosenberg. (2000). San Francisco workshop.

TEDx Allendale Columbia School: Maria Engels. (2019). “Nonviolent communication and self-awareness”.

TEDx UWCRCN: Sylwia Wlodarskw. (2017). “Non-violent communication: how to get your point across”.

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Tiago Rodrigo

Tiago Rodrigo

Entusiasta de frameworks ágeis, Kanban e Trello - mas, acima de tudo, do protagonismo e do encontro de cada um com seu propósito. Economista Comportamental dedicado a esta ciência multidisciplinar na construção de modelos que facilitem e simplifiquem a tomada de decisão em diversos contextos.

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