Início  /  Blog

Li e concordo: a maior mentira da internet

Todos nós já passamos por isso: ao nos cadastrarmos em um serviço, preenchemos certas informações pessoais e, logo a seguir, nos deparamos com uma lista enorme, contendo todas as condições de uso imagináveis. Depois, rolamos a tela para baixo, clicamos em “Li e concordo”, e começamos a usá-lo, indiferentes a possíveis coletas de dados ou outros tipos de nuance.

Você já se perguntou o quão longos são esses termos e políticas de uso, nos principais serviços online? O artista Dima Yarovinsky já e até os transformou em arte [1]. Os resultados, impressos em folhas A4 e fonte padrão, são ao mesmo tempo fascinantes e paradoxais: tudo está lá — desde o armazenamento de dados pessoais até estratégias de anúncios e permissões para usar qualquer conteúdo que você compartilhe, inclusive em canais ainda inexistentes. Mas só porque tudo está lá, negligenciamos essas informações, concordando com cláusulas que não nos preocupamos em ler.

Esta questão não é exclusiva do mundo online: termos de uso de software, apólices de seguro, contratos de locação de imóveis e manuais de carro também se juntam a essa literatura técnica, não tão inspirada. Um estudo recente da Bristol Street Motors, por exemplo, levantou que o manual do Audi A3 possui 167.699 palavras [2]. Considerando a velocidade média em que um adulto consegue ler, isso representa 11 horas e 45 minutos — ou 49 minutos a mais do que levaria para concluir “O Senhor dos Anéis: as duas torres”, de J. R. R. Tolkien. Um número alarmante, se comparado a nossa média de leitura semanal (16 minutos) [3].

 

A natureza humana em relação ao conhecimento

O professor Donald O. Case e colegas afirmaram que “Muitos estudos iniciais de comunicação (…) assumiram que os indivíduos buscam, ou pelo menos prestam alguma atenção, às fontes de informação. Essa suposição está enraizada na cultura ocidental, pelo menos desde a afirmação de Aristóteles de que ‘todos os homens, por natureza, desejam saber’”. Sob esta ótica, a busca por informação seria um aspecto intrínseco da natureza humana [4,5].

 

 

No entanto, as evidências não necessariamente apoiam a ideia de que as pessoas sempre buscam informações quando estas lhes são benéficas. Um trabalho de pesquisa de Golman, Hagmann e Loewenstein apontou que as pessoas, por vezes, evitam informações, mesmo quando elas “são úteis, livres e independentes de considerações estratégicas” [6]. Abraham Maslow também escreveu sobre este ponto, dizendo que nós podemos buscar conhecimento para reduzir a ansiedade, como também evitá-lo pela mesma razão [7].

Em um experimento com participantes de seis países que mantinham um diário com os pensamentos e atividades relacionadas à informação, Bhuva Narayan e colegas identificaram que, às vezes, quando as informações podem causar desconforto mental ou aumentar a incerteza, as pessoas tendem a evitá-las [8]. Assim, entender por que as pessoas buscam alguns tipos de dados e evitam outros pode ajudar governos e empresas a projetar melhores sistemas e aprimorar a experiência geral do cliente.

Sobrecarga de informações

Em 2012, um projeto chamado “Muito longo, nem li” (do acrônimo em inglês TL; DR – Too long; didn’t read) foi criado para corrigir o que seus autores classificaram como “a maior mentira da internet”, ou seja, o fato de que quase ninguém lê os termos de serviço com os quais concordam. Esta iniciativa analisa termos de uso e políticas de privacidade de vários sites, classificando-os de A (muito bom) para E (muito ruim) [9].

Mas por que exatamente não lemos esses detalhes quando eles poderiam nos ajudar a entender as características dos serviços e produtos que estamos prestes a usar? Afinal, a maioria das empresas declara tudo isso explicitamente.

O psicólogo Barry Schwartz levantou uma hipótese: em sua TED Talk, explicou que a sobrecarga de informações muitas vezes traz paralisia em vez de liberdade de escolha. Com base em vários experimentos, descobriu que, embora as pessoas geralmente desejem mais opções e detalhes, elas também querem simplificar suas vidas. Ter mais opções, então, contribui para um efeito cumulativo na tomada de decisão que causa ansiedade e angústia [10].

Sheena Iyengar e Mark Lepper testaram uma abordagem semelhante: a partir de quiosques de degustação da geleia Wilkin & Sons dispostos em supermercados, observaram quantas pessoas parariam, provariam e comprariam o produto. A diferença: enquanto uns ofereciam 6 sabores, outros dispunham de 24 variedades. Os resultados indicaram que os quiosques com mais opções atraíram mais consumidores (60%). No entanto, apenas 3% deles compraram a geleia, em comparação com os quase 30% que o fizeram na condição de escolha limitada. Dessa forma, os pesquisadores sugerem que uma grande variedade de opções pode ser mais atraente no início, mas também pode reduzir a motivação intrínseca ao comportamento de compra subsequente [11].

Um exemplo pessoal: meu smartphone recentemente atualizou sua principal ferramenta de gerenciamento de downloads. Quando eu a acessei, um pop-up informou que a política de privacidade tinha sido alterada, solicitando que eu a lesse. Ok… até eu perceber que o documento tinha 19 páginas (8.246 palavras, ou 27 minutos de leitura) e nenhuma pista sobre quais cláusulas realmente mudaram. Embora este documento fornecesse informações essenciais sobre a privacidade dos dados, era difícil encontrar a motivação para analisar seu conteúdo. E as consequências podem variar de dados pessoais compartilhados com terceiros, questões de direitos autorais em arquivos armazenados e até processos judiciais.

Portanto, quando as empresas fornecem quantidades enormes de informação, especialmente se estas não estiverem categorizadas e destacarem as principais ideias tratadas, elas sobrecarregam os usuários com detalhes que estes talvez nem queiram saber — seja naquele momento ou em qualquer momento posterior [12,13].

Sludges: como corrigir esses termos

Richard Thaler e Cass Sunstein, economistas comportamentais responsáveis pela Teoria dos Nudges, enfatizaram como esse tipo de intervenção pode ajudar as pessoas a tomar melhores decisões [14]. Nudges são incentivos simples e baratos, projetados para apoiar a tomada de decisão nos contextos em que vieses, hábitos e atalhos mentais podem nos levara resultados sub ótimos. Eles se baseiam, portanto, em princípios comportamentais e não promovem alterações significativas nas motivações financeiras. Opções padrão que inscrevem trabalhadores em programas de previdência, lembretes para consultas médicas e adesivos mostrando o caminho para a lixeira mais próxima, por exemplo, são todos tipos de nudges; uma multa por jogar lixo no chão, não.

Contudo, e junto aos nudges, uma abordagem com objetivos opostos foi criada: “(…) situações em que essas variáveis contextuais dificultam atividades que são do interesse dos consumidores, resultando em uma redução do seu bem-estar. Elas são conhecidas como sludges [15]. Nas palavras de Sunstein, ‘Consumidores, funcionários, estudantes e outros são frequentemente submetidos a sludges: atritos excessivos ou injustificados, processos burocráticos que custam tempo e dinheiro e dificultam a vida, etapas frustrante sou humilhantes e que podem acabar privando as pessoas de acesso a bens, oportunidades e serviços importantes” [16].

Alguns sludges podem ser propositais para causar confusão e ambiguidade, ou levar os consumidores a escolhas que não são de seu melhor interesse. Outros, no entanto, podem ser criados sem querer, seja porque a equipe de desenvolvimento estava muito próxima de seu produto ou serviço para notar pontos de atrito, ou porque as empresas não analisaram minuciosamente todas as interações envolvidas.

Em um relatório recente intitulado “Seeing Sludge”, o cientista comportamental Dilip  Soman e seus colegas defendem que “as organizações devem ter em mente que estão projetando para seres humanos que são cognitivamente preguiçosos, esquecidos, emocionais e míopes (…)”. Consequentemente, eles criaram um dashboard para ajudaras empresas a revisar processos, comunicações e inclusão, e assim maximizar a eficácia sob a perspectiva do usuário final, simplificando sua jornada [15].

 

Esta ferramenta contém blocos de verificação para cada um dos três aspectos e apoia na identificação e ajuste desses pontos de fricção. Por exemplo:

 

–         Os canais para realizar a tarefa são fáceis de usar ou requerem múltiplas interfaces e múltiplas interações?

–         Quantas atividades ou etapas exclusivas são necessárias para completar uma tarefa?

–         Com quantas entidades distintas o usuário final precisa interagir para completar a tarefa?

–         Algumas partes do processo interferem com outras?

Este painel deve ser usado como um esforço inicial para rever as três esferas. Os autores também recomendam que as organizações criem equipes dedicadas e personalizem seus próprios dashboards, melhorando assim o relacionamento com os clientes. Afinal, é do seu próprio interesse que as interações corram sem atrito, e os usuários atinjam seus objetivos ou tarefas da maneira mais simples possível.

Essa estratégia também se estende à divulgação de informações, já que listar todos os termos em um documento longo e chato não ajuda as partes a estarem totalmente alinhadas em condições e políticas. “Sabemos que o cérebro humano é particularmente eficiente no processamento de informações estruturadas, lineares e que assumem a forma de listas de verificação concretas, em vez de informações idênticas que são apresentadas em um bloco de texto” [15]. O mero ato de dividir informações em blocos distintos, resumir seu contexto e usar referências de fácil acesso pode, então, aumentar o engajamento do usuário [17,18], a consciência sobre as informações, além de evitar mal-entendidos ou expectativas frustradas — uma situação ganha-ganha.

 

Conclusão

Soman e colegas destacam que “encontrar e corrigir os sludges envolve uma apreciação do fato de que coisas aparentemente irrelevantes importam. Somente se desenvolvermos o hábito de pensar nos detalhes e procurar as pequenas coisas que podem criar fricção, teremos sucesso no desenvolvimento de organizações mais compatíveis com o ser humano”. Assim, podemos apoiar nossas organizações com ferramentas como o dashboard de Soman para construir uma nova perspectiva sobre como implementar produtos e serviços, garantindo que as informações relevantes sejam acessíveis realmente acessadas.

 

Referências:

  1. Designboom. (2018). Artist visualizes the lengthy terms of services of large corporations like Facebook and Instagram.
  2. Bristol Street Motors. (2020). Car handbooks are longer than many famous novels – have you read yours?
  3. American Academy of Arts & Sciences. (2018). Time spent reading.
  4. Case, D. O., Andrews, J. E., Johnson, J. D., & Allard, S. L. (2005). Avoiding versus seeking: the relationship of information seeking to avoidance, blunting, coping, dissonance, and related concepts. Journal of the Medical Library Association : JMLA, 93(3), 353–362.
  5. Aristotle. (1984). Complete works of Aristotle: the revised Oxford translation. New Jersey: Princeton University Press.
  6. Golman, R., Hagmann, D., & Loewenstein, G. (2017). Information avoidance. Journal of Economic Literature, 55 (1): 96-135. DOI:10.1257/jel.2015124.
  7. Maslow, A. H. (1963). The need to know and the fear of knowing. Journal of General Psychology 68 (1): 111–25.
  8. Narayan, B., Edwards, S. L., & Case, D. O. (2011). The role of information avoidance in everyday-life information behaviors. In Proceedings of the 74th ASIS&T Annual Meeting, ASIST, New Orleans Marriott, New Orleans.
  9. ToS;DR Team. (n.d.). Terms of service; Didn’t read.
  10. Schwartz, B. (2005, July). The paradox of choice [Vídeo]. TED: Ideas worth spreading.
  11. Iyengar, S., & Lepper, M. (2000). When choice is demotivating: can one desire too much of a good thing? Journal of Personality and Social Psychology, 2000, Vol. 79, No. 6, 995-1006.
  12. Schwartz, B., Ward, A., Monterosso, J., Lyubomirsky, S., White,     K., & Lehman, D. (2002). Maximizing versus satisficing: happiness is a matter of choice. Journal of Personality and Social Psychology, Vol. 83,     No. 5, pages 1178–1197; 2002.
  13. Schwartz, B. (2016). The paradox of choice: why more is less, Revised edition. New York: Ecco.
  14. Thaler, R., & Sunstein, C. (2009). Nudge: improving decisions about health, wealth, and happiness. Penguin Books.
  15. Soman, D., Cowen, D., Kannan, N., & Feng, B. (2019). Seeing Sludge: towards a dashboard to help organizations recognize impedance to end-user decisions and action. Behavioural Economics in Action at Rotman, September.
  16. Sunstein, C. R. (2019). Sludge and ordeals. Duke Law Journal, 68, 1843-1882. doi:10.2139/ssrn.3288192.
  17. Bhargava, S. & Manoli, D. (2015). Psychological frictions and the incomplete take-up of social benefits: Evidence from an IRS field experiment. American Economic Review, 105(11), 3489-3529. doi:10.1257/aer.20121493.
  18. Manoli, D. S., & Turner, N. (2014). Nudges and learning: Evidence from informational interventions for low-income taxpayers. NBER Working Paper, No. 20718.

 

Compartilhe por aí:

Twitter
Facebook
LinkedIn
Telegram
WhatsApp
Tiago Rodrigo

Tiago Rodrigo

Entusiasta de frameworks ágeis, Kanban e Trello - mas, acima de tudo, do protagonismo e do encontro de cada um com seu propósito. Economista Comportamental dedicado a esta ciência multidisciplinar na construção de modelos que facilitem e simplifiquem a tomada de decisão em diversos contextos.

Deixe um Comentário