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A roda do futuro

Muito além da ficção científica

Sistema Solar, ano 2120. Um grupo de empreendedoras e algoritmos representados por seus avatares humanos discute a viabilização de frotas interespaciais capazes de despachar artefatos terrestres dentro de apenas um dia útil – em Marte! O setor de turismo agora oferece experiências cósmicas: um pacote para dois adultos, uma criança e seis robôs permite assistir ao equinócio terrestre a partir de um resort em órbita – e dizem que o panorama é deslumbrante. Enquanto coloco minha xícara de café na desimpressora [1] observo a trajetória subaquática de uma baleia pré-histórica, pela sua própria perspectiva, como se estivesse agarrado a ela.

Mais do que ficção científica, imaginar o futuro tornou-se uma ferramenta estratégica de alta importância: todos nós, pessoas e empresas, precisamos desenvolver e praticar um olhar crítico para além de nosso tempo, projetando possibilidades (tecnológicas, sociais, culturais, humanas). Assim, vislumbrando caminhos à frente, somos capazes de agir de forma a garantir nossa perenidade e relevância frente às transformações – que, convenhamos, acontecem cada vez mais rápido.

Oportunidades ilimitadas

Pensar o futuro abre um leque infinito de oportunidades, mas pode ser um exercício desafiador: normalmente, ao discutir cenários e suas consequências, as pessoas tendem a se pronunciar de maneira contida, levantando aspectos vagos, características incompletas ou fatos confusos demais para serem analisados.

Por isso, em 1971, Jerome Glenn, futurista americano nascido no dia em que a segunda bomba nuclear nascido na trágica data em que a segunda bomba nuclear foi detonada [2], concebeu uma ferramenta para extrair esses resultados através de uma espécie de brainstorming estruturado – porém, sob a ótica do que poderia acontecer no futuro.

Preocupado em oferecer algo suficientemente intuitivo, a chamada “roda do futuro” (originalmente: futures wheel) representa um método poderoso para identificar consequências primárias, secundárias e terciárias de qualquer evento, situação emergente ou decisão futura, incentivando a busca por impactos e alternativas. Ademais, esta é uma forma de deixar o pensamento linear, hierárquico e simplista de lado em prol de uma visão mais orgânica, orientada a redes e a complexidade de relacionamento entre suas partes.

‍Alô, alô! Planeta Terra chamando!

Antes de começar nosso exercício, tenha em mente que a rodado futuro requer as mesmas características de facilitação e colaboração de um brainstorming tradicional – caso você precise de algumas dicas, clique aqui e aqui para acessar nossos artigos sobre o tema. Duas outras premissas são importantes:

nenhuma ideia deve ser julgada. Estamos falando sobre o futuro, uma abstração da mente humana composta, essencialmente, por incertezas. Sendo assim, não faz sentido discutir se algo é ou não factível. Mesmo ideias completamente absurdas – ao menos sob uma perspectivado nosso mundo contemporâneo – devem ter o mesmo peso de qualquer outra. Eventualmente, elas poderão ser refinadas ou integradas e, de repente, tornarem-se muito mais plausíveis (e até prováveis);

não existem limitações. Tecnologia, budget, horas de trabalho, espaço, seja-lá-o-que-for: nada dever ser um empecilho para a sua ideia. Resgatemos o nostálgico Lucas Silva e Silva [3],criando nosso próprio mundo da Lua, “onde tudo pode acontecer”. Durante a sessão, portanto, todos os seus recursos devem ser considerados infinitos.

Acelerando o tempo em 50, 100 anos!

Desenhar a roda do futuro é simples: comece identificando o cenário que será abordado. Conforme nosso exemplo inicial, vamos falar em logística:

 

A partir daí, crie esferas representando possibilidades ainda inexistentes para esse cenário. Costumo pedir que participantes pensem em como as coisas serão daqui a, no mínimo, 50 anos.

Deixo aqui minhas contribuições para o próximo blockbuster distópico – caso tenha interesse em conhecer mais detalhes sobre essas perspectivas, leia o Anexo 01:


Legenda:

01 – Entregas interplanetárias: cápsulas espaciais

02 –Oceanovias: túneis subsquáticos

03 –Teletransporte: impressoras multissentido super-rápidas

04 – Morfeu: experiências oníricas imersivas

05 –Inse-tech: nanopartículas carregadas por insetos

Importante: observe que essas perspectivas provavelmente não sobreviveriam a uma análise crítica focada no que é possível fazer hoje. Entretanto, estamos falando de 50 anos de avanços científicos, totalmente imprevisíveis, que podem torná-las todas as próximas etapas de troca de serviços e mercadorias no futuro da humanidade. Sendo assim, continuamos com o exercício satisfeitos de nossas contribuições.

O próximo passo são os desdobramentos de cada uma das esferas que criamos no item anterior. Agora, no entanto, não desejamos novas possibilidades (elas fazem parte apenas das esferas de primeiro nível); queremos questões contextuais que tragam mais detalhes sobre como cada uma dessas possibilidades afetaria a vida – no caso, em 2070:


A partir daí, e rumo ao terceiro nível, discutimos as implicações de cada desdobramento. Com isso, nosso panorama do futuro ganha relações de causa e consequência, além de apresentar interrelações e possibilidades complementares ou conflitantes:

Neste ponto, é bem provável que o facilitador(a) tenha de priorizar alguns caminhos em detrimento de outros, já que o modelo passa a ficar bastante grande. Logo, é importante definir (antecipadamente) formas de votação que permitam a todos legitimar o caminho mais relevante a ser desbravado.

De acordo com a configuração do grupo e seus participantes, pode ser necessário distribuir pesos diferentes durante essas votações: uma investidora que acabou de aportar US$ 1 milhão na empresa talvez seja elegível a dois votos, em vez de um – garantindo, ainda que parcialmente, que a continuidade do projeto estará alinhada a seus interesses e expectativas. Esta opção, no entanto, pode ser ambígua, na medida em que torna o grupo mais sujeito a perspectivas enviesadas ou que não necessariamente contribuirão para a melhoria, crescimento e inovação. Ao final, teremos um modelo parecido com este:

Em que as esferas verdes (N2) representam desdobramentos e contexto, e as esferas laranja (N3), implicações e consequências. A relação entre possibilidades, N2 e N3 não é obrigatoriamente 1 para 1, cabe uma análise das interseções que podem acontecer.

Ao final deste exercício, talvez tenha surgido uma dúvida a respeito de “onde ele vai parar”. Nada impede que você inclua ainda mais detalhes, desdobrando o método em um quarto ou quinto nível. O problema é que a organização visual e as discussões a respeito de causalidade podem acabar se tornando complexas demais, prejudicando o andamento da dinâmica.

Se isso ocorrer, é preferível definir o terceiro nível como o último e, caso o grupo demonstre interesse em seguir adiante (e o escopo definido para o trabalho assim o permitir), transformar a roda do futuro em uma espécie de roteiro de ficção científica – falaremos sobre essa técnica com mais detalhes em outra ocasião –,criando assim um enredo social, econômico, cultural, tecnológico, ético etc. a respeito dessas possibilidades futuras.

Roda do futuro e também da fortuna

Pense comigo: os carros do futuro precisarão de pneus? A resposta para esta pergunta vale US$ 2.54 bilhões [4] para a Goodyear. Visa e Mastercard, por exemplo, têm enorme interesse em projetar o futuro dos meios de pagamento; se eu pudesse imprimir qualquer coisa em minha casa a partir de uma impressora multidimensional – e multissentidos, como mencionamos anteriormente –, qual seria o impacto econômico às empresas de e-commerce? E ao mercado de trabalho como um todo, considerando as dezenas de milhões de pessoas pelo mundo que atuam nesse segmento?

Discutir – não se trata de prever! – o futuro é, portanto, uma ferramenta de extrema importância, e será questão de sobrevivência em determinados momentos. Deixo aqui, então, uma provocação a ser levantada ao final da dinâmica: o quanto estamos preparados para enfrentar esses cenários futuros que acabamos de vislumbrar?

Anexo 01

‍Roda do futuro: outros modos de usar

De acordo com o próprio Jerome Glenn, a roda do futuro pode ser usada para:

– pensar possíveis impactos delongo prazo causados por tendências ou situações atuais;

– organizar ideias sobre evento sou tendências futuras;

– trabalhar com previsões decenários alternativos;

– discutir interrelações complexas;

– demonstrar oportunidades de pesquisa futuras;

– desenvolver vários conceitos a partir de uma tendência ou evento inicial;

– fomentar o pensamento sobre o futuro em grupos de inovação, estratégia organizacional, dentre outras áreas;

– fomentar uma perspectiva consciente a respeito do futuro;

– apoiar sessões de brainstorming com mais liberdade de participação;

– mitigar riscos, especialmente o de ser “pego de surpresa” em um mercado em rápidas transformações

Anexo 02

Realinhando a órbita dos planetas

 

Ao longo da facilitação de uma roda do futuro, você pode se deparar com situações que, se não forem prontamente corrigidas, transformarão o exercício em uma mera projeção de como tecnologias e cenários atuais podem se desdobrar ao longos dos próximos… dois ou três anos. Como este não é o objetivo, separamos algumas dicas para contribuir com o sucesso da sua jornada:

– futuro, mas nem tanto: é bastante comum que as primeiras ideias levantadas pelo grupo sejam desdobramentos temporais muito mais próximos do que os 50 anos propostos pelo exercício. Como orientar sem julgar? Com base em nosso cenário sobre logística, alguém pode sugerir, por exemplo, entregas por drones. A tecnologia de drones já existe, e há diversos testes de entrega em domicílio sendo realizados com esse tipo de equipamento (surpreenda-se (ou não) com este). Logo, não é um caminho muito inovador para o nosso horizonte de meio século. Sempre que isso ocorrer, incentive um olhar mais além, começando por formas de ressignificar essa primeira ideia, empurrando-a mais a frente, na linha do tempo. Repita essa provocação até que a sugestão se liberte de suas raízes naquilo que já é factível no presente (ou uma tendência que já desponta como provável para os próximos anos);

– mapa mental: Alguns participantes sugerem o desmembramento completo de cada possibilidade antes de prosseguir com a demais. Isso dá ao método ares de mapa mental. Uma das grandes vantagens da roda do futuro é o desenvolvimento de visões sistêmicas – competência que repetidamente aparece na lista das 10 mais para os profissionais do século XXI. Sendo assim, evite esta rota e explique, logo no início da sessão, que o preenchimento acontecerá por círculos concêntricos, começando de dentro para fora:


– briefing: a menos que esteja sendo usada unicamente como uma ferramenta de brainstorming para exercitar o pensamento sistêmico e colaborativo, nunca abra mão do briefing com os sponsors ou organizadores da sessão. Esta conversa vai indicar os fatores críticos de sucesso e ajudar o facilitador a conduzir a discussão rumo a esse objetivo;

– versão 2.0: alguns anos após a elaboração do método, Jerome Glenn resolveu atualizá-lo com uma nova possibilidade: a discussão a partir de esferas de impacto específicas. Embora bem menos usada que a original, esta versão pode oferecer respostas interessantes, especialmente se a prototipação faz parte do escopo. Neste caso, teríamos algo como:

Anexo 03

Distopias tiago-rodriguianas

– entregas interplanetárias: cápsulas com propulsão de altíssima eficiência, estabelecendo uma rota de entregas entre a Terra e Marte (com possibilidade de conexão na Lua, agradando também àqueles que preferem conhecer com calma o que tem pelo caminho). Essa esfera viabilizaria a colonização deste último, visto que insumos e matérias-primas poderiam ser recebidos em pouco tempo, reduzindo assim o efeito de potenciais hostilidades oriundas do planeta vermelho;

– oceanovias: túneis subaquáticos ligando todos os portos do mundo. Em vez de navios cruzando distâncias enormes sobre a superfície do mar, sujeitos às mais ferozes reações da natureza, poderíamos ter um novo conceito de embarcação, flutuando pelo vácuo;

– teletransporte: impressoras capazes de construir e reconstruir não apenas objetos físicos, mas experiências sinestésicas, envolvendo os outros quatro sentidos. Ao comprar um caju nordestino, por exemplo, o vendedor “desimprime” a fruta em sua máquina que, por sua vez, mapeia toda sua composição, a fim de que eu possa reconstruí-la em minha casa, em São Paulo, aproveitando inclusive seu aroma e sabor;

– MorfEu: o terreno fértil dos sonhos ganharia um aliado cinematográfico, capaz de projetar ao longo do meu sono, experiências imersivas completas. Por exemplo: visitas a países e planetas estrangeiros, com certo nível de autonomia, em que pudesse escolher aventuras, degustação de pratos, bebidas, interação com pessoas nativas, presença em espetáculos – tudo construído como um roteiro, a partir de experiências reais;

– Inse-tech: nanopartículas contendo elementos essenciais para nutrição, fertilização, recuperação e semeação de terrenos, instaladas em e transportadas por insetos. A partir do fluxo dessas colônias, seria possível estudar, proteger e revitalizar áreas inteiras.

Saiba mais em:

[1] Eletrodoméstico inventado no início do século XXII que decompõem objetos em suas partículas elementares, se retroabastecendo de matéria-prima para fabricar outras coisas, conforme necessidade.

[2] A segunda bomba nuclear foi lançada sobre a cidade de Nagasaki em 9 de agosto de 1945.

[3] Ocasionalmente, o artigo fará alguns movimentos para trás, de volta ao passado.

[4] Calculado com base no preço de fechamento do mercado acionário em 17 de dezembro de 2020.

DUNNE, Anthony, RABY, Fiona. (2013). Speculative everything: design, fiction and social dreaming. Massachusetts: MIT Press.

MCGONIGAL, Jane, in: Coursera. (2020). “Collaborative foresight: how to game the future.

MOOC disponível em: https://www.coursera.org/learn/collaborative-foresight

MILLER, Riel. (2018). Transforming the future: anticipation in the 21st century. Routledge. Disponível gratuitamente para o Kindle – clique aqui.

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Tiago Rodrigo

Tiago Rodrigo

Entusiasta de frameworks ágeis, Kanban e Trello - mas, acima de tudo, do protagonismo e do encontro de cada um com seu propósito. Economista Comportamental dedicado a esta ciência multidisciplinar na construção de modelos que facilitem e simplifiquem a tomada de decisão em diversos contextos.

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