Os avanços tecnológicos das duas últimas décadas trouxeram uma fonte virtualmente infinita de informações. Contudo, beber dessa fonte nem sempre nos tem deixado mais conscientes de nossa situação. Tome como exemplo as discussões políticas recentes: qualquer argumento cuja sombra contradiga minimamente alguma de nossas crenças é imediatamente refutado. Dessa forma, embora o processo de comunicação tenha sido expandido e facilitado, em especial por conta das redes sociais, o resultado dessas interações é pouco eficaz:
“(…) paradoxalmente, a riqueza de informações disponíveis nos torna mais resistentes à mudança, porque é muito fácil encontrar dados em apoio a nossa própria opinião. Isso é válido até para opiniões extremadas (…)” – Tali Sharot (2018)
Mas por que é tão difícil entender (que dirá concordar com) pontos de vista diferentes?
Antes, proponho a vocês um jogo rápido:
Há quatro pessoas em uma festa. Cada uma recebe um cartão – de um lado, consta a bebida que ela está tomando; do outro, sua idade. As cartas são então dispostas sobre uma mesa da seguinte forma:
Sabendo que o consumo de álcool por menores de 18 anos é ilegal, quais cartas devem ser viradas para nos certificarmos de que a lei não está sendo infringida?
Anote em um papel, pois voltaremos à resposta em breve.
Comentamos em artigos anteriores (aqui e aqui) que uma das “heranças” de nossa evolução cerebral foi o surgimento – e a permanência – de vieses, e que essas influências sutis nem sempre nos conduzem por bons caminhos, nos predispondo a erros de percepção e julgamento. Dentre o rol de influências a que estamos sujeitos, uma das mais frequentes é o viés de confirmação. Segundo Sharot (2018):
“Quando você fornece novos dados a alguém, a pessoa rapidamente aceita as provas que confirmam suas noções preconcebidas (conhecidas como crenças prévias) e avalia as contraprovas com um olhar crítico.”
O viés de confirmação é, portanto, uma influência direta que o desejo de estarmos certos exerce sobre nossas crenças. Quando desenvolvemos uma linha de pensamento sobre um determinado assunto, nós passamos a considerá-la verdadeira e, a partir daí, buscar e interpretar informações de maneiras que suportem essa visão de mundo; ou simplesmente abandonar a pesquisa por novas evidências tão logo essa visão seja confirmada. Afinal, aceitar informações que se encaixam em nossas crenças é fácil e requer pouco esforço cognitivo.
Reflita, então: ao pesquisar um tema no Google, por exemplo, o que você costuma acessar primeiro: páginas que, de alguma forma, corroboram com a opinião que você já possui, ou percepções opostas?
Uma vez que formamos uma opinião, nós tendemos a ignorar ou rejeitar qualquer fato que possa contradizê-la, ainda que haja fortes evidências sobre nosso equívoco. Esse viés sugere que nós não percebemos o mundo de maneira objetiva, e sim a partir de perspectivas que confirmam nossas narrativas mentais. Por esta razão, podemos nos tornar prisioneiros de premissas falsas, a partir do momento em que estivermos “comprometidos” com elas.
O viés de confirmação pode se manifestar em diversos contextos:
– financeiro: quando compramos ações de uma empresa incertos sobre o porquê dessa escolha e, logo em seguida, buscamos notícias que confirmem as possibilidades de ganho. Notícias negativas que porventura aparecerem terão um peso menor nessa análise, ainda que seu impacto sobre o desempenho dos papeis possa ser mais provável e mais crítico;
– psicológico: quando uma pessoa acredita que um determinado grupo a está ignorando, e então passa a interpretar cada movimento e palavra dessas pessoas como manifestações claras desse comportamento;
– científico: as boas práticas da experimentação científica sugerem que um pesquisador deve buscar formas de refutar suas hipóteses, e não de confirmá-las. Entretanto, interpretações enviesadas, isto é, que consideram apenas resultados que validam essas hipóteses, têm se tornado muito comum no meio acadêmico. Além do descrédito que pode recair sobre a área de pesquisa como um todo, essas ações fazem com que estudos equivocados sejam continuados, gerando grandes perdas de tempo, recursos e dinheiro;
– tecnológico: os algoritmos que abastecem os feeds e timeline das redes sociais traçam perfis de nossos gostos e comportamentos. Assim, ao clicar em um link, curtir uma página ou compartilhar uma reportagem, essas ações geram pegadas virtuais que são posteriormente usadas para recomendar conteúdos que provavelmente nos interessariam. O problema é que essa estratégia tende a homogeneizar o tipo de informação que recebemos – e que, consequentemente, consumimos –, polarizando cada vez mais nossa opinião. Alguns especialistas classificam isto como “filtros-bolha”, ou seja, a ação do algoritmo para fornecer produtos, serviços e informações personalizadas, mas que acaba restringindo nosso contato com conteúdos diversificados, que poderiam nos desafiar ou ampliar nossa avaliação do mundo. De qualquer forma, os filtros-bolha fortalecem o viés de confirmação, na medida em que entregam mais do mesmo, reiterando ideias e perspectivas previamente formadas;
– social: em 1954, a comunidade de Belligham (EUA), passou por uma “epidemia de buracos no para-brisa”: um grupo de moradores notou pequenos buracos no vidro de seus carros e acionou a polícia, acreditando ser isso fruto de vandalismo. Com a divulgação do caso, pouco tempo depois outros moradores reportaram o mesmo problema. E outros. E ainda outros, totalizando mais de duas mil queixas – o que, de certa forma, já deixava alguns bons sinais de que o problema dificilmente seria fruto da ação de vândalos. As denúncias continuaram surgindo, e as autoridades locais chegaram a escrever uma carta ao governador de Washington e ao então Presidente Eisenhower, solicitando apoio em caráter emergencial. Logo os cientistas verificaram que carros novos não possuíam os tais buracos – que, no fim das contas, eram resultado das condições normais de direção, quando pequenos objetos colidiam com o para-brisa e provocavam o pequeno dano. Ou seja, eles já estavam lá, as pessoas é que não tinham percebido isso – e quando o fizeram, atribuíram essa constatação a crenças diversas que surgiram a respeito (confirmando sua suspeita de que “algo estranho” havia acontecido). A propósito, dê uma olhada no para-brisa do seu carro: dependendo do ano de fabricação, ele certamente terá alguns pontinhos também
Desse modo, os exemplos acima – selecionados dentre inúmeros outros – demonstram que nós tendemos a acreditar naquilo em que queremos acreditar. Buscar evidências que confirmem nosso ponto de vista é uma resposta natural do cérebro e, portanto, bastante difícil de evitar. Mas…
… o quão longe podemos ir nesse viés?
Há uma história interessante sobre Hiroo Onoda, oficial de inteligência do Exército Imperial Japonês, durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1944, ele foi incumbido de uma missão nas Filipinas, na ilha de Lu Bang, onde deveria, de todas as formas possíveis, combater, dificultar e sabotar quaisquer operações dos Aliados na região. Além disso, ele não estava autorizado, sob hipótese alguma, a se render ou cometer suicídio.
A ilha foi tomada pelas forças conjuntas dos EUA e Filipinas em 28 de fevereiro de 1945, e Onoda, com mais três soldados, fugiu para as montanhas. De lá, manteve-se fiel às ordens recebidas, atuando em atividades de guerrilha – mesmo quando, em outubro de 1945, forças Aliadas começaram a lançar panfletos na região, informando que a guerra havia terminado e convocando-os a se render. Onoda teve contato com esse material, mas acreditou que era uma forma de propaganda, a fim de enganá-los. E seguiu em sua missão.
Ao longo dos anos, um de seus companheiros fugiu e se entregou ao governo filipino, ao passo que os dois outros acabaram mortos em confrontos com forças policiais e habitantes do local. Apenas Onoda resistira. E assim foi por trinta anos, até que, em 1974, um japonês chamado Norio Suzuki, que havia abandonado a faculdade e, em suas palavras, viajava pelo mundo “em busca do tenente Onoda, de um panda e do abominável homem das neves, não necessariamente nessa ordem”, encontrou-o nas montanhas.
Os dois conversaram bastante, e Suzuki contou-lhe sobre o fim da guerra – fato ocorrido em 15 de agosto … de 1945! Ainda assim, Onoda não acreditou na história e só se rendeu quando, tempos depois, o relato de Suzuki ganhou repercussão no Japão e fez com que o governo mobilizasse o Major Taniguchi, seu antigo comandante e agora dono de uma livraria, a viajar até as Filipinas e liberá-lo oficialmente do serviço.
Por fim, em 9 de março de 1974, e em um evento organizado junto ao governo filipino, Suzuki e Taniguchi se encontraram com Onoda, formalizando o ato:
A história de Onoda, evidentemente, é um caso extremo, mas demonstra quão fortes podem ser nossas convicções, mesmo quando há inúmeros sinais de que elas podem estar erradas. Neste caso, e apesar do contato com várias evidências fortes (os americanos chegaram a lançar na região, a partir de um bombardeiro, fotos recentes e cartas de seus parentes, pedindo que ele saísse das montanhas e se entregasse, pois a guerra havia acabado!), ele as considerou “propaganda inimiga”.
A propósito, uma curiosidade: Onoda mudou-se para o Brasil no fim da década de 70, tornando-se fazendeiro no Mato Grosso do Sul. Sua história, retratada na autobiografia No Surrender, sem tradução para o português, é impressionante.
Como, então, desafiar nossas crenças?
Para reduzir a influência do viés de confirmação, podemos fazer um exercício de experimentação científica. Não se preocupe! Apesar do nome, é simples (a menos que você já tenha definido em sua mente o contrário 😊):
1. Ao lidar com um determinado assunto – a quarentena, para usarmos um exemplo recente e recentemente polêmico – assuma que seu ponto de vista é meramente uma hipótese e que, por isso mesmo, precisa ser validado;
2. Marque essa hipótese no centro de uma folha ou documento digital (você pode usar um mapa mental, caso esteja habituado com este tipo de ferramenta) e coloque de um lado os argumentos que se antepõem à sua visão e, do outro, os que corroboram com ela. Comece nessa ordem, com as evidências contrárias primeiro, visto que argumentos “a favor” das suas crenças prévias tendem a se consolidar mais rápido e criar raízes, posteriormente difíceis de remover;
3. Faça uma pesquisa para cada um desses argumentos, a fim de verificar se eles se sustentam em fatos ou são meras opiniões. Destaque tudo o que houver respaldo (científico, estatístico, cultural etc.) e procure acessar fontes com posicionamentos antagônicos. Observe, no entanto, que o simples fato de buscar opiniões contrárias não anula por si só a influência do viés de confirmação – em alguns casos, o efeito pode ser justamente o oposto: quando sentem suas crenças confrontadas, as pessoas podem reagir como se “seu lado” estivesse sob ataque e, dessa forma, apegar-se ainda mais a ele;
4. Reflita sobre esses argumentos e só então assuma uma posição. O objetivo é enxergar o mundo sem buscar instâncias que simplesmente massageiem seu ego e, para isso, é preciso manter-se aberto (leia sobre mindset aqui).
Não é possível realizar essa análise (sistema 2 em sua essência) para todos os assuntos com que nos deparamos no dia a dia. Certamente, temos de nos limitar aos mais importantes ou com maior impacto em nossas vidas; não obstante, esse exercício fortalece nosso poder de análise e amplia nossa visão de mundo.
Por fim, não se esqueça de que todas as informações passam por um enquadramento (falaremos melhor disso em outro artigo) e, consequentemente, foram produzidas para evidenciar alguns elementos em detrimento de outros – o que inevitavelmente nos predispõe a uma determinada perspectiva. Logo, interprete os fatos com cautela, deixando a emoção de lado tanto quanto possível (afinal, a emoção faz parte do sistema 1, nosso piloto automático, que quer resolver as coisas rápido, economizando energia do corpo).
Já dizia o jornalista americano: “desde que ouvi falar sobre o viés de confirmação, vejo-a por toda parte”.
De volta ao exercício
Se você chegou até aqui, releia o exercício inicial e reflita sobre a resposta que você deu. Ela se mantém ou você prefere mudá-la?
Neste problema, a condição que devemos verificar é: se uma pessoa está consumindo bebida alcoólica, então ela deve ter pelo menos 18 anos. Ainda que tentadoras, há duas cartas que, se viradas, não nos ajudam em nada para testar a condição:
Assim, os únicos casos que precisam ser verificados são: (1) o da pessoa que está bebendo vinho, pois ela não pode ter menos de 18 anos, e (2) o da pessoa que tem 15 anos, que não pode estar consumindo bebida alcoólica. Precisávamos buscar informações que pudessem refutar a hipótese, em vez de confirmá-la.
Saiba mais em:
– ALLEN, Ben. (2018) Confirmation bias: 6 ways to recognise it and 5 ways to counter it. Disponível em: https://cutt.ly/LynEops
– ONODA, Hiroo. (1974) No surrender: my thirty-year war. Nova Iorque: Kodansha International.
– PARISER, Eli. (2011) TED Talk, “Beware online filter bubbles”. Disponível com legendas em português em: https://cutt.ly/0ynEfJP
– SHAROT, Tali. (2018) A mente influente: o que o cérebro nos revela sobre nosso poder de mudar os outros. Rocco Digital.
– TALEB, Nassim Nicholas. (2015) A lógica do Cisne Negro: o impacto do altamente improvável. Editora Best Seller.
– THALER, Richard & SUNSTEIN, Cass. (2019) Nudge: como tomar melhores decisões sobre saúde, dinheiro e felicidade. Editora Objetiva.