Estava no mercado fazendo algumas compras para a celebração de fim de ano, quando um colega passou feito um foguete e bradou: – Feliz ano novo! Respondi às felicitações com um sorriso percebido pelo olhar, mas escondido pela máscara. Trocamos algumas palavras e, ao se despedir, ele disse: – Os anos tem sido tão cruéis que espero que o próximo ano nos traga coisas boas. Esta frase ficou em minha cabeça.
Como é costume nos fins de ano, renovam-se os votos de esperança e o desejo de um novo ano melhor e diferente. Cada um traz consigo expectativas, sonhos e ideais. Veio então à minha mente uma frase do grande educador Paulo Freire: “É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo…”
Nós insistimos em nos esquivar de nossas responsabilidades. Fazemos isso muitas vezes para fugir das nossas dores e de um íntimo contato com nós mesmos. Quando nos vemos diante de um problema, tendemos a fazer de conta que ele não existe ou transferir responsabilidades, buscando culpas e culpados em tudo e em todos. Precisamos passar a nos sentir parte daquilo que acontece em nossas vidas.
Como seria bom se, quando olhássemos para os anos que se passaram, pudéssemos dedicar-lhes agradecimento, gratidão. Eles foram repletos de tempestades, mas também nos transformaram. Percebendo ou não, somos hoje frutos daquilo que vivemos. Se chegamos até aqui, isso é resultado de tudo aquilo que experienciamos. É necessário acolher os anos que se passaram, ao invés de atacá-los, culpá-los por eventuais deslizes ou transferir responsabilidades. Vamos colocar o ano que se encerra no colo e oferecer-lhe carinho, independentemente do que aconteceu, porque, por mais duro e difícil que tenha sido, ele nos trouxe até aqui.
Assim serão todos os próximos anos enquanto estivermos vivos. E se, ao invés de ficarmos repetindo este comportamento de transferência de responsabilidades, pudéssemos ressignificar? Esse processo de ressignificação pode começar com três pontos que gostaria de trazer para reflexão:
1) Autoavaliação: é necessário que comecemos a nos abrir para dentro, para nós mesmos, buscando respostas internas, e não justificativas externas para tudo o que acontece. Vamos mergulhar profundamente nas nossas relações. E, quando falo em relações, falo de três esferas: com o planeta, com a sociedade e conosco. Reclamamos das chuvas e das enchentes ou das secas e das faltas de água. Reclamamos do calor ou do frio. Mas por que não reclamamos de nós mesmos quando gastamos água em abundância, quando jogamos lixo que irá permanecer no meio ambiente por séculos, quando preferimos concreto ao invés de verde? É hora de assumir responsabilidades e fazer parte de um mundo que gradativamente vem contribuindo para mudanças ambientais. Ressignificar nossa relação com o planeta, trazendo para nossas vidas uma relação de maior zelo, nos permitirá contribuir para um melhor equilíbrio ambiente – ser humano e nos dará a oportunidade de contemplar essa beleza que nos cerca e da qual fazemos parte. Quando falamos em sociedade, tendemos a culpar políticos, colegas de trabalho, pais, família. Por que não perguntamos quem elegeu os políticos, quem não deu o máximo para a atividade do trabalho, quem não praticou o perdão dentro do próprio lar? Ressignificar nossa relação com a sociedade implica em fazer constantemente a mesma pergunta: qual minha parcela de contribuição para isso estar acontecendo? Isso certamente nos aproximará mais do outro. E, em relação a nós mesmos, temos investido em autoconhecimento e na melhora da relação conosco? Temos cuidado da nossa saúde física e mental? Lembrem-se de que nosso eu, é o nosso templo, é a nossa sustentação. Se não cuidarmos de nós mesmos, provavelmente não teremos força para as mudanças e evoluções que a vida nos impõe.
2) Autocompaixão: apesar de olharmos pra dentro e buscarmos melhorias e evoluções constantes, será que precisamos ser tão duros conosco? Será que não precisamos diminuir nosso nível de exigência? É normal errar, falhar, cometer deslizes. Como seres humanos, temos imperfeições, medos e vulnerabilidades. Ao invés de nos castigarmos ou nos repreendermos, precisamos aprender a nos abraçar. Ao fazermos isso, passamos a nos acolher mais e, com isso, temos menos medo de falhar. Nós só acertamos na medida em que arriscamos e tentamos. Vamos aprender a nos abraçar mais.
3) Gratidão: nesse mundo onde lutamos pela perfeição, esquecemos de agradecer. Mas a gratidão só floresce no reconhecimento. Precisamos aprender a reconhecer tudo de bom que acontece em nossas vidas para podermos agradecer. Precisamos estar mais atentos a tantas coisas boas que acontecem conosco e não estamos sendo capazes de perceber. Na gratidão, a vida floresce, a paz habita e novos horizontes se abrem.
Que o abrir das portas do novo ano nos traga um olhar mais profundo. O poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu uma vez: “Para ganhar um ano novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.” É pensando nisso que trago a vocês o desafio de viver um ano novo realmente diferente, um ano novo de dentro para fora. Sejamos melhores, sejamos felizes, sejamos amor, e, acima de tudo, sejamos nós mesmos. Que nossa mudança interior gere frutos, trazendo o essencial para nossas vidas. Um feliz EU NOVO!