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Biden, Trump, colégios eleitorais: um guia (quase) definitivo para entender as eleições presidenciais dos EUA

Neste 3 de novembro, 150.000.000 de votos são esperados para decidir quem será o 46º Presidente dos Estados Unidos: o democrata Joe Biden ou o republicano Donald Trump. Este número representa 65% da base de cidadãos legalmente aptos a votar e, possivelmente, o maior número de eleitores já registrado em uma votação americana. Este dado, contudo, traz consigo uma série de nuances importantes para entender como, exatamente, funciona o sistema eleitoral dos EUA. Apertem os cintos, pois há algumas curvas bruscas pelo caminho.

Voto… antecipado?

De acordo com o U.S. Elections Project, iniciativa desenvolvida pelo Professor Michael McDonald, da Universidade da Flórida, este ano foram registrados 101.214.494 votos antecipados, sendo pouco mais de 35,93 milhões na forma de votação presencial e 65,28 milhões através de cartas. Embora a pandemia certamente tenha tornado este formato mais interessante, na medida em que evita aglomerações, os votos por carta (mail-in voting) já existem há muito tempo. Em seu livro “O direito de voto: a controversa história da Democracia nos Estados Unidos”, Alex Keyssar aponta que desde o século XVII, no Estado de Massachusetts, homens podiam votar de casa, se suas residências fossem “vulneráveis ao ataque de índios”. Mais à frente, durante a Guerra Civil, o modelo ganhou escala nacional, permitindo que combatentes participassem das eleições. Na disputa presidencial de 1864, por exemplo, que teve como vencedor o republicano Abraham Lincoln, soldados da União puderam votar a partir de campos e hospitais de campanha, supervisionados por seus oficiais. Segundo Paul Gronke, Professor de Ciências Políticas no Reed College e fundador do Early Voting Information Center, essa medida foi adotada porque Lincoln “queria assegurar os votos dos soldados que estavam servindo fora de casa” (Time, 2016).

Finda a Guerra Civil, a mesma lógica foi adotada em períodos de conflito posteriores, como durante as Guerras Mundiais, a fim de garantir o direito de escolha democrática a todos os cidadãos, inclusive aqueles fora do território americano. Mais ainda: entre 1917 e 1918, a Convenção Constitucional de Massachusetts entendeu que esse benefício (absentee ballot) deveria ser estendido a outras categorias, como profissionais do sistema ferroviário e vendedores, visto que eles também se sacrificavam para o bem comum – tal como os soldados.

Se a princípio o voto por carta era autorizado apenas a essas pessoas e algumas situações específicas de doença e imobilidade, a regra começou a mudar nos anos 1970, quando o Estado da Califórnia permitiu que seus habitantes se inscrevessem para essa modalidade, a despeito de terem uma justificativa plausível para isso – o que ficou conhecido como no-excuse absentee ballot. Daí em diante, diversas iniciativas semelhantes foram adotadas por outros Estados americanos, em eleições estaduais e federais. Oregon, por exemplo, oficializou em 2000 o sistema único de votação por carta.

 

 

Para as eleições de 2020, mais quatro Estados já haviam adotado totalmente o modelo postal, sendo eles: Colorado, Hawaii, Washington e Utah. Dos 50 Estados americanos, portanto, 29, além de Washington D.C., já permitem o no-excuse absentee ballot e outros 16 oferecem a opção de voto por carta, ainda que sob determinadas condições – para o detalhamento completo, vide referência da NCSL (2020).

O interessante é que o sistema de voto antecipado tem início até 45 dias antes da data oficial de votação, dependendo do Estado. Motivo: o tempo necessário para que as pessoas recebam os envelopes em suas residências, preencham-no e o remetam de volta às autoridades eleitorais. Em média, contudo, esse período é de 19 dias e se encerra até a última sexta-feira antes das eleições – no caso, 30 de outubro.

Por fim, alguns Estados permitem a votação antecipada presencial, organizada por oficiais representantes das autoridades federais, do próprio condado em que o voto é realizado, ou membros de câmaras e comissões estaduais. Entretanto, as regras variam de Estado para Estado, sendo alguns locais mais flexíveis, permitido voto nos finais de semana, e outros mais restritos, em datas e horários previamente determinados.

Como recomendação, os eleitores americanos são orientados a procurar as regras de sua região a partir da página da Conferência Nacional de Legislaturas Estaduais (NCSL) ou sites independentes que surgem com o propósito de compilar e, principalmente, simplificar o acesso à informação, como o Rock the Vote – este, em particular, online desde os anos 90, quando executivos da indústria musical se uniram em resposta à censura de artistas do hip-hop e do rap, engajando milhões de jovens no exercício de seu direito e representação de seus interesses.

 

O sistema de voto por carta está sujeito a fraudes?

Ao longo dos últimos meses, o atual Presidente Donald Trump fez diversos pronunciamentos públicos contra esse modelo de votação, alegando que o mesmo favorecia candidatos democratas, estaria sujeito a fraudes ou poderia sofrer interferência estrangeira. Durante um evento de campanha em 17 de agosto, em Wisconsin, chegou a afirmar que “a única forma de perder esta eleição é se ela for fraudada”.

Mas será que essas afirmações encontram respaldo?

O partido democrata incentivou seus apoiadores a votar de maneira antecipada, temendo que o serviço postal dos EUA (USPS – United States Postal Service) não daria conta de entregar todos os votos a tempo. Neste âmbito, Donald Trump promoveu um grande impasse a respeito de um fundo adicional de US$ 25 bilhões que seria destinado a fortalecer o serviço, aprovado pela Câmara, mas barrado na Casa Branca.

Não obstante, existem diversas regras que mitigam fraudes no sistema – e que geram mais embates entre as visões democrata e republicana.

Para votar para presidente nos EUA, você precisa ter cidadania americana e ao menos 18 anos de idade. Alguns Estados, porém, influenciados por medidas republicanas, aprovaram leis obrigando eleitores a portar documentos de identificação e/ou se registrar para que seu voto possa efetivamente ser computado. Segundo os democratas, este foi um artifício para dificultar o voto dos cidadãos de mais baixa renda e membros de minorias, que não teriam uma carteira de motorista, por exemplo, para comprovar sua identidade.

De qualquer forma, e tomando as eleições presidenciais de 2016 como base, de um total de 57,2 milhões de votos por carta, apenas 318,728 (ou 0,006%) foram rejeitados, segundo The Election Administration and Voting Survey, e pelas seguintes razões:

– 27,5% por divergência de assinatura;

– 23,1% por perda do prazo de votação;

– 20,0% por voto sem assinatura;

– 3,0% por voto sem assinatura de testemunha;

– 1,5% devido ao falecimento do eleitor;

– 1,3% porque eleitor votou presencialmente; e

– 1,1% quando eleitor, em sua primeira participação, não tinha o devido registro eleitoral

A análise da base de dados de eleições anteriores demonstrou indicadores ainda mais baixos: dentre 250 milhões de votos por carta analisados por uma iniciativa de cientistas políticos do MIT a partir dos números do Heritage Foundation’s Election Fraud Database, apenas um percentual irrisório de 0,00006% apresentou algum tipo de fraude propriamente dita.

As falas de Trump, porém, têm um outro efeito adverso, uma vez que a desinformação pode ser nociva e ganhar espaço rapidamente na opinião popular: de acordo com uma pesquisa conjunta da ABC News e Washington Post, realizada em julho deste ano, 49% dos americanos acreditam que esse modelo é vulnerável a fraudes.

Contagem de votos

Devido às diferentes modalidades de voto, a contagem até hoje nunca se encerrou no mesmo dia da votação. No entanto, é comum que já no dia seguinte haja um percentual de apuração suficiente para determinar o vencedor.

A maioria dos sites jornalísticos trabalha com “projeções” por Estado, ou seja, marcos que indicam que um dos candidatos atingiu uma quantidade tal de votos improvável de ser ultrapassada com base na votação restante. A partir daí, calculam o total de colégios eleitorais correspondentes a esse Estado e os atribuem ao candidato. Ademais, existe uma tradição de votos: Estados republicanos quase sempre votam no candidato republicano, assim como os Estados democratas, em seu correspondente do partido simbolizado pelo asno , facilitando assim essa análise.

 

Agora vem a parte curiosa: o Presidente dos Estados Unidos não é eleito por maioria de votos diretos e, sim, por maioria de votos colegiados. Ao todo, existem 538 colégios eleitorais no país, distribuídos entre os 50 Estados federativos, proporcionalmente a sua população. Assim, Estados muito populosos, como a Califórnia, têm mais colégios eleitorais do que os menos populosos, como o Maine. Entretanto, existe uma regra de que um Estado, a despeito dessa mesma população, não pode ter menos do que 3 colégios eleitorais. Dessa forma, temos a seguinte distribuição:

Os votos computados em 3 de novembro são então delegados a cada um dos membros dos colégios eleitorais que, por sua vez, elegem o novo (ou reelegem o atual) Presidente dos Estados Unidos no dia 14 de dezembro.

Como regra geral, o candidato mais bem votado em um Estado recebe por extensão os votos de todos os colégios eleitorais correspondentes. Por isso, estados como a Califórnia (55 colégios), Texas (38), Flórida (29) e Nova Iorque (29) são particularmente críticos, visto que garantem uma boa proporção dos 270. Mesmo assim – e a esta altura do artigo isto não será nenhuma surpresa –, a regra não vale para todos os Estados: o Maine e Nebraska dividem seus votos colegiados com base na proporção de votos recebida por cada candidato.

A contagem de votos é feita majoritariamente por equipamentos eletrônicos – tanto no cômputo de votos digitais, quanto na leitura de códigos de barra das votações por carta –, embora mesários tenham de conferir manualmente eventuais registros físicos não processados pelos computadores.

Uma vez que a votação é encerrada, os dados de cada localização são transferidos para uma Central Eleitoral. Este processo, no entanto, compreende tanto transferências eletrônicas de dados, quanto o transporte físico de HDs e outros tipos de memória até as estações eleitorais. Só a partir daí os votos começam efetivamente a constar dos registros oficiais de cada Estado e a serem divulgados na Internet. Embora os Estados também trabalhem com as projeções mencionadas anteriormente, o resultado oficial obtido a partir da contagem de 100% dos votos válidos pode ocorrer apenas semanas depois.

Mas por quê?

A explicação do sistema de votos dos Estados Unidos remonta ao século XVIII, mais precisamente ao período em que a Constituição do país estava sendo elaborada. Naquela época, 1787, a extensão territorial e a dificuldade de comunicação tornavam uma eleição direta algo praticamente inviável – além de indesejado, sob alguns olhares específicos.

Dessa maneira, os colégios eleitorais surgiram como alternativa.

Para os constitucionalistas, ela dificultava que legisladores de Washington D.C. tivessem poder para eleger um presidente; para Estados menores, era uma forma de ganhar voz, ainda que um sussurro, no processo eleitoral; para os fazendeiros sulistas, uma grande vantagem: mais populosos do que os Estados do norte, essas regiões no entanto tinham uma quantidade muito significativa de escravos que, embora não fossem autorizados a votar, eram incluídos no Censo americano e considerados na distribuição final de colégios de cada Estado – portanto, uma maneira sutil de garantir os interesses do grupo escravocrata e agrário.

Algumas curiosidades

– Nas eleições presidenciais de 2000, Al Gore foi derrotado por George W. Bush no Estado da Flórida por meros 537 votos (de um total de mais de 6 milhões). Essa diferença quase simbólica, porém, foi suficiente para garantir os 29 votos do colegiado para o republicano e decidir a votação;

– Na disputa de 2016, Hillary Clinton obteve quase 3 milhões de votos a mais do que Donald Trump. Ainda assim, o candidato republicano conseguiu uma vitória confortável com 304 votos colegiados, já que venceu em Estados chave, em que essa representação de colégios é maior;

– Em toda a história americana, apenas 5 Presidentes foram eleitos sem terem recebido a maioria de votos (diretos, não colegiados): John Quincy Adams (1825), Rutherford B. Hayes (1877), Benjamin Harrison (1889), George W. Bush (2000) e Donald Trump (2016);

– E se ninguém obtiver maioria de votos? Essa situação ocorreu apenas uma vez, em 1824, quando havia quatro candidatos concorrendo à Presidência e a decisão foi tomada pelos membros da Câmara (House of Representatives). Hoje, com essencialmente dois, isso se torna bastante improvável;

– Apesar da popularidade absolutamente superior de Biden e Trump, há vários outros concorrendo às eleições presidenciais de 2020: Jo Jorgensen, pelo partido Liberal; Howie Hawkins, pelo partido Verde; além de mais de trinta candidatos independentes ou associados a partidos pouco expressivos, como o Socialista, o Progressista, o Constituinte, dentre outros;

– De certa forma, podemos dizer que há pesos diferentes dentre a escolha direta dos eleitores americanos. Na Califórnia, Estado com 55 votos colegiados e uma população de 39,51 milhões (estimativa do Censo de 2019), cada eleitor tem um peso de 1,39 na definição do presidente; já em um Estado menor, como Vermont, para o qual são designados apenas 3 colegiados dentre uma população de quase 624.000, a razão do voto sobe para 4,81. Se considerarmos apenas o número de eleitores registrados dentre a população desses Estados, a razão passa a ser de 2,52 (55,21% da população californiana) e 6,1 (78,86% em Vermont);

 

– Se Trump for reeleito, seu mandato será estendido até 2024, sem interrupções. Caso Biden vença, haverá um momento de transição em que o novo Presidente deverá nomear seus ministros – neste caso, o democrata seria juramentado e daria início a seu mandato apenas em 20 de janeiro de 2021.

 

‍Saiba mais em:

ABC News / Washington Post poll: The 2020 Election. Pesquisa eleitoral realizada em julho de 2020 e disponível (inglês), em:

https://www.langerresearch.com/wp-content/uploads/1214a22020Election.pdf

ARN, Jackson. (2018). The cartoonist who turned democrats into donkeys and republicans into elephants. Reportagem publicada em 25 de outubro, no portal Artsy.net, e posteriormente atualizada para a CNN: Why democrats are donkeys and republicans are elephants.

Ballotpedia, the Encyclopedia of American Politics.

KEYSSAR, Alex. (2014). O direito de voto: a controversa história da Democracia nos Estados Unidos. São Paulo: Editora Unesp.

LIPTAK, Kevin. (2020). Trump warns of ‘rigged election’ as he uses conspiracy and fear to counter Biden’s convention week. Reportagem para o portal CNN, publicada em 17 de agosto.

Market Watch. (2020). White House rejects House bill for emergency Postal Service aid. Reportagem publicada no portal em 23 de agosto.

NCSL – National Conference of State Legislatures. (2020). State laws governing early voting.

Rock the Vote. Página para orientação de eleitores a respeito das datas, condições e formas de votação disponíveis em cada região do país.

GREVE, Joan E. & SINGH, Maanvi. (2020). US 2020 election could have the highest rate of voter turnout since 1908. Reportagem publicada no portal The Guardian, em 24 de outubro.

The Guardian. (2020). Trump says Republicans would ‘never’ be elected again if it was easier to vote. Reportagem de 30 de março de 2020.

U.S. Election Assistance Commission. (2017). Early, absentee and mail voting. White paper disponibilizado em 17 de outubro.

U.S. Election Assistance Commission. (2016). The Election Administration and Voting Survey 2016 Comprehensive Report.

WAXMAN, Olivia B. (2016). This is how early voting became a thing. Reportagem para a TIME Magazine, edição de 25 de outubro de 2016.

World Population Review. (2020). Number of registered votes by State.

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Tiago Rodrigo

Tiago Rodrigo

Entusiasta de frameworks ágeis, Kanban e Trello - mas, acima de tudo, do protagonismo e do encontro de cada um com seu propósito. Economista Comportamental dedicado a esta ciência multidisciplinar na construção de modelos que facilitem e simplifiquem a tomada de decisão em diversos contextos.

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