Publicado em 2010, o livro “Sociedade do cansaço”, escrito pelo filósofo Byung-Chul Han, trouxe à tona um debate importante sobre as relações de trabalho – mas, desta vez, sob a perspectiva das pessoas em relação a si mesmas.
O assunto tem se mostrado cada vez mais presente nas organizações – recentemente escrevi um artigo sobre o livro “Morrendo por um salário”, de Jeffrey Pfeffer, traduzido para o português em outubro de 2019 (https://www.arquiteturarh.com.br/post/ambientes-de-trabalho-toxicos-e-por-que-e-tao-dificil-deixa-los) – e, no último dia 20 de fevereiro, foi capa da edição 1203 da revista Exame, com o título: “Burnout: o esgotamento pelo trabalho é o tema de gestão de pessoas mais quente de 2020. Os excessos trazem perdas econômica e sociais – e não podem mais ser ignoradas” (https://exame.abril.com.br/edicoes/1203/).
Han nasceu em 1959, na Coreia do Sul, mas poucos detalhes são conhecidos sobre sua vida pessoal, já que durante muito tempo evitou entrevistas. Aluno de Graduação em Metalurgia, em Seul, deixou o curso e seu país natal em meados dos anos 80 rumo à Alemanha – mesmo sem saber alemão. Lá, estudou Filosofia e Literatura, obtendo o doutorado em 1994. A partir daí, dedicou-se à carreira acadêmica e já publicou 16 livros.
“Sociedade do cansaço” é um ensaio filosófico, o que significa que se trata de um modelo de texto dissertativo, não ficcional, que busca fundamentar uma visão pessoal que Byung-Chul Han tem sobre o tema. É uma espécie de divagação compreendendo premissas, inferências e conclusões que expõem sua opinião sobre uma verdade que, a seu ver, precisa ser apresentada a todos. E a verdade defendida por Han é que a maneira como estamos conduzindo nossas vidas, nessa corrida frenética de produtividade, é patológica.
No texto, ele usa muitos termos e expressões relacionadas à imunologia, significando que é preciso que nosso organismo interprete algumas decisões e situações como estranhas, externas, negativas, a fim de que nossos mecanismos de proteção sejam ativados e esses elementos, combatidos. Contudo, na conjuntura atual ocorre precisamente o oposto: a causa de doenças neuronais, como a depressão e o burnout, está no fato de entendermos essa relação de produtividade como positiva.
Sociedade da disciplina x sociedade do desempenho
A sociedade do desempenho descrita por Han é um contraponto à sociedade da disciplina postulada pelo filósofo francês Michel Foucault, no século XX. Nesta, o indivíduo está submetido à vigilância constante, sujeito a normas e punições, e sua ação provém, em geral, da coerção exercida por estruturas hierarquicamente superiores. A palavra-chave que a caracteriza é proibição. Na do desempenho, por outro lado, as pessoas assumem voluntariamente o discurso da produtividade, e cada uma se torna “empresária de si mesmo”, única responsável por seu destino – a negatividade oriunda da disciplina dá lugar à positividade do “eu posso”.
“A carreira da depressão começa no instante em que o modelo disciplinar de controle comportamental, que, autoritária e proibitivamente, estabeleceu seu papel às classes sociais e aos dois gêneros, foi abolido em favor de uma norma que incita cada um à iniciativa pessoal: em que cada um se comprometa a tornar-se ele mesmo. (…) O depressivo não está cheio, no limite, mas está esgotado pelo esforço de ter de ser ele mesmo.” [p. 27]
Diferentemente das proibições suscitadas pelo contexto da disciplina, a sociedade do desempenho é alicerçada pela crença do “poder ilimitado”: expressões como Yes, we can –divulgada nas primárias do partido democrata norte-americano em 2004 e tornada lema da campanha presidencial de Barack Obama – e Just do it, slogan da marca Nike, simbolizam esse movimento e seu caráter de positividade. Assim, a “iniciativa”, o “projeto”, a “motivação” reformulam o paradigma da produtividade.
O interessante é que esse processo de transição encontrou terreno fértil em um pensamento já enraizado no inconsciente social: o desejo de maximizar a produção. Enquanto proibições e punições podem levar a produtividade até um certo ponto, a partir do qual geram o efeito de bloqueio, a ideia de “positividade do poder” mostra-se mais eficiente, gerando indivíduos mais produtivos que aqueles da obediência.
O poder, no entanto, não anula o dever. O indivíduo da sociedade do desempenho permanece disciplinado, mas em relação a seu próprio “sucesso”. E é neste ponto que surgem os primeiros traços da exaustão: o que adoece o indivíduo do desempenho não é o excesso de responsabilidade ou iniciativa, mas o imperativo do desempenho.
“A queda da instância dominadora não leva à liberdade. Ao contrário, faz com que liberdade e coação coincidam. (…)” [p. 29]
Autoexploração e a revolução do tempo
Vivemos uma espécie de angústia – a de não estarmos fazendo tudo o que poderíamos. Durante o Carnaval, vivenciei essa sensação ao viajar com minha esposa e filha para uma fazenda no interior de São Paulo. Foram quase duas horas de estrada e mais quarenta minutos por um trajeto de terra e cascalho, até chegar ao local. Lá, uma surpresa com a qual não contava: meu celular sem sinal algum e um WiFi que só funcionava, de maneira fraca e irregular, próximo à recepção, em uma varanda onde a família proprietária servia o café da tarde. Logo pensei em me entrincheirar por ali; porém, diante da paisagem de mata, árvores e um trio de lagos, reforçada pelo pedido de “Vamos brincar, papai”, decidi praticar a desconexão e aproveitar o momento. Carpe diem, diriam.
Essa atitude, contudo, não foi tão simples: “não fazer nada” – expressão que frequentemente usamos para classificar essas paradas (cada vez mais raras) de contemplação da natureza e de (re)encontro consigo mesmo – inicialmente gerou uma sensação de “tempo perdido”. Lembrei-me de documentos pendentes; um curso EaD com ideias para oficinas de Design Thinking, há tempos em stand by; e-mails e mensagens aguardando resposta – e o ônus de produtividade perdida que aquele período acarretaria veio à tona.
“Hoje a pessoa explora a si mesma achando que está se realizando.”
Precisei de dois dias para me acostumar à rotina de “ócio” (na visão do desempenho, evidentemente) reforçada pelo time da fazenda – não, eles não tinham nenhum plano de atividades, nem agendas, nem nada que pudesse representar compromissos. Cada hóspede tinha seu chalé e era livre para caminhar por todos os espaços verdes ali disponíveis, criando sua própria jornada, interagindo com outras famílias e observando os animais.
E o resultado foi um feriado de restauração da tranquilidade; de reflexão sobre coisas que havia lido e visto, criando ideias para meus próximos passos este ano; e, especialmente, uma reconexão com esse período de brincadeiras, aprendizado e descontração ao lado da Sophie – vê-la subir e descer o escorregador diversas vezes, seus cachinhos pra lá e pra cá, no balanço, e sua curiosidade sobre os bichos que passavam (marimbondo ou borboleta?).
“A aceleração atual diminui a capacidade de permanecer: precisamos de um tempo próprio que o sistema produtivo não nos deixa ter; necessitamos de um tempo livre, que significa ficar parado, sem nada produtivo a fazer, mas que não deve ser confundido com um tempo de recuperação para continuar trabalhando; o tempo trabalhado é tempo perdido, não é um tempo para nós”.
Segundo Han, precisamos revolucionar o uso do tempo. Transitamos do “dever fazer” para o “poder fazer” e, na sociedade do desempenho, se você não é um vencedor, a culpa é sua. E a consequência dessa lógica traiçoeira, geralmente negligenciada até que nos atinja, é a alienação de si mesmo – que no físico se traduz em anorexias, compulsões alimentares, consumo exagerado de produtos ou entretenimento, depressão, burnout.
Hoje cada indivíduo é um trabalhador que explora a si próprio; somos vítimas e algozes ao mesmo tempo. E nessa perspectiva, acabamos presos em uma espiral de produtividade que nos consome paulatinamente e contra a qual não conseguimos lutar: as pessoas travam batalhas internas, questionando a si, não à sociedade. Protestar contra o quê? Contra si mesmo?
Aquilo que Han classifica como “solidão do autoemprego” constitui o modelo presente de trabalho. Antes, as empresas competiam entre si, mas internamente era possível encontrar bolsões de solidariedade. Hoje, no entanto, todos competem contra todos – certamente há um aumento de produtividade, mas sob o ônus do senso de comunidade que nos faz humanos, resultando assim em indivíduos esgotados, isolados e deprimidos.
Multiplicidade de estímulos, multiplicidade de tarefas
Han afirma que “ser observado hoje é um aspecto central do ser no mundo”. O problema reside no fato de que “o narcisista é cego na hora de ver o outro” e, sem esse outro, “não se pode produzir o sentimento de autoestima”. Pelas redes sociais – LinkedIn principalmente –, observamos essas ondas de positividade: fotos dominicais de pessoas e grupos comemorando viradas de noite em frente ao computador, agendas lotadas e decisões difíceis de deixar a família em prol novos projetos. Não que isso seja exclusivamente ruim. Torna-se ruim a partir do momento em que essa hiperatividade se converte no padrão, acompanhada da necessidade constante de demonstrá-la, validá-la, reforçá-la, inspirando a ocupação plena do tempo.
O filósofo ironiza o apogeu do narcisismo ao mencionar as obras de arte e seu papel na contemporaneidade: arrematadas por cifras cada vez mais absurdas, são em seguida confinadas a cofres de bancos, longe da vista do público. Qual o propósito e o valor dessa arte?
Essa sobrecarga de positividade se manifesta também na quantidade de estímulos, informações e impulsos, que surgem a todo instante, disputando e fragmentando nossa já inquieta atenção. Fala-se muito sobre multitasking – e tenho visto recrutadores anunciando vagas em que esta pseudo-habilidade é requerida. Mas existe um problema central sobre desempenhar várias tarefas ao mesmo tempo: nosso cérebro simplesmente não está preparado para isso. Ao menos não se essas tarefas exigirem análise. Sobre isso, Han destaca:
“A multitarefa não é uma capacidade para a qual só seria capaz o homem na sociedade trabalhista e de informação pós-moderna. Trata-se antes de um retrocesso. A multitarefa está amplamente disseminada entre os animais em estado selvagem. Trata-se de uma técnica de atenção indispensável para sobreviver na vida selvagem.” [p. 33]
A razão do comparativo é o fato de que, na vida selvagem, os animais não podem adentrar um estado contemplativo, pois precisam estar alerta para o seu meio o tempo todo. Mesmo quando estão comendo ou se reproduzindo, precisam se atentar para perigos, predadores, mudanças no ambiente que demandem fuga ou combate.
Já no ser humano, o estado contemplativo é imprescindível para a produção cultural e intelectual. Não é possível produzir novos conhecimentos “apagando incêndios” de trabalho – metáfora tristemente popularizada em projetos – o tempo todo. Dessa forma, a reflexão – inclusive a preocupação pelo bom viver – cedem espaço à preocupação contínua pela sobrevivência. Estamos em uma sociedade em que a atenção plena, profunda, foi pulverizada pelo que se chamou de hiperatenção – uma rápida mudança de foco entre diversas atividades que não estimula o entendimento e muito menos conduz a soluções.
Do relógio de ponto ao WhatsApp
O século passado representou uma era imunológica na qual havia distinção clara entre dentro e fora, amigo e inimigo. E é por conta disso que Han faz o paralelo da sociedade do desempenho com a imunologia: o objeto de defesa imunológica é a estranheza – mesmo que o estranho não tenha nenhuma intenção hostil, mesmo que ele não represente nenhum perigo, é eliminado em virtude de sua alteridade. Hoje, a sociedade está se afastando cada vez mais do esquema de organização e de defesa imunológicas:
“Sem a presença do outro, a comunicação degenera em um intercâmbio de informação: as relações são substituídas pelas conexões, e assim só se conecta com o igual; a comunicação digital é somente visual, perdemos todos os sentidos; vivemos uma fase em que a comunicação está debilitada como nunca: a comunicação global e dos likes só tolera os mais iguais; o igual não dói!”.
Na época do relógio de ponto, podia-se estabelecer o limite do trabalho. Agora, com laptops, WiFi, smartphones e WhatsApp o trabalho pode ser realizado em qualquer momento e local: a sala de estar de casa confunde-se com o escritório e vice-versa, se considerarmos os ambientes super cool que estão sendo difundidos, em uma tentativa de ampliar a atratividade de algumas empresas, mas que oculta uma relação em que as fronteiras do trabalho e do não-trabalho estão misturadas.
Han finaliza descrevendo uma época que ele chama de “pós-marxista”: se Karl Marx dizia que o trabalho é uma desrealização contínua, a sociedade do desempenho valida a exploração na forma de liberdade e autorrealização. Curiosamente, o primeiro sintoma do burnout é justamente a euforia – o ímpeto desenfreado do sujeito empreendedor capaz de atingir qualquer patamar. No entanto:
“Aqui não entra o outro como explorador, que me obriga a trabalhar e me explora. Ao contrário, eu próprio exploro a mim mesmo de boa vontade na fé de que possa me realizar. E eu me realizo na direção da morte.” [p. 116]